
Por Julius Evola. Tradução de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares, @conhecimentosproibidos e @magiasinistra.
Do Capítulo IX, “Il Satanismo” (“O Satanismo”) de Maschera e volto dello spiritualismo contemporaneo (“Máscara e Face do Espiritualismo Contemporâneo”)
Crowley foi um personagem cuja personalidade supera algumas das figuras já consideradas. Se o associamos ao Satanismo é porque ele mesmo nos convida a fazê-lo. Na verdade, ele deu a si mesmo o título de a “Grande Besta 666” que é o Anticristo do Apocalipse, enquanto deu às mulheres que ele selecionou e usou, o título de “Mulher Escarlate” que, no Apocalipse de João, é a Grande Prostituta associada à “Besta”. A sentença de “homem mais perverso da Inglaterra”, dada a ele por um juiz na Inglaterra em relação a determinado processo judicial, deve tê-lo agradado muito, tamanha era sua predileção pelo escândalo, não fugindo de máscaras e mistificações de todo tipo apenas para este propósito.
As invocações usadas nas cerimônias presididas por Crowley eram as seguintes:
Tu Sol espiritual! Satã! Tu olho, tu luxúria. Bradai! Bradai! Gire a roda, ó meu Pai, ó Satã, ó Sol!
– (Liber Samekh).
Por si só, pareceria confirmar o Satanismo, mesmo que não sem alguma mistura (referência ao “Sol espiritual”). No entanto, é necessário ver que Crowley não colocou Satã no lugar de Deus, dada a elevada consideração que ele tinha por tradições, como a Cabala, que venerava uma divindade, mesmo que concebida metafisicamente e não religiosamente. Por fim, como nos demais casos considerados, o Satanismo ostentoso de Crowley é explicado apenas em termos de uma antítese ao Cristianismo cuja doutrina condenava os sentidos e a realização integral do homem, porém, no seu caso, com base iniciática e “mágica” em vez de naturalista. Se fossem evocadas forças perigosas, parece que no caso específico de Crowley, as condições anteriormente mencionadas para lidar com experiências do tipo estariam presentes, em primeiro lugar porque Crowley tinha uma personalidade excepcional e estava predisposto de forma natural a contatar com o supra-sensível (além de possuir um “magnetismo” particular) e, em segundo lugar, através de seus vínculos com organizações em certa medida sucessoras daquelas de caráter iniciático. Estas são, inicialmente, a Ordem Hermética da Golden Dawn, da qual Crowley participou, embora depois ele tenha rompido com ela e fundado a Ordo Tempi Orientis (O.T.O., uma reminiscência dos Templários, revivendo até mesmo o Baphomet templário). No entanto, esta Ordem utilizou muitos dos rituais mágicos da Golden Dawn, destinados a comunicar com os chamados “Mestres Secretos” e com determinadas entidades ou “inteligências”. Para este fim Crowley também a utilizou, de modo a atribuir a gênese do Liber Legis, o compêndio das suas doutrinas, a uma entidade que ele evocou no Cairo, Aiwaz, que teria sido uma manifestação do Hoor-Paar-Kraat egípcio , o “Senhor do Silêncio”. Deve-se considerar que, em geral, nem tudo deveria ser reduzido a um devaneio, e que alguns contatos de Crowley com um misterioso mundo supra-sensível foram reais.
Aqui não é o caso de nos determos na vida de Crowley, que foi bastante agitada e influente, porque além de cultivar a magia (ele tinha isto a dizer: “Eu reabilitei a magia e a determinei no decorrer da minha vida”), ele foi um poeta, pintor, alpinista que tentou escalar os picos mais altos do Himalaia (o K2 e o Kanchenjunga), experimentador de drogas (até escreveu o Diary of a Drug Fiend, o Diário de um Demônio das Drogas, publicado em 1922). Aqui nos limitaremos a indicar brevemente suas doutrinas e técnicas. No Liber Legis podemos desconsiderar as obrigatórias polêmicas anticristãs e pagãs. Lá lemos, entre outras coisas “Sê forte, ó homem! Luxúria, desfrute de todas as coisas sensatas e de êxtase: não tema que algum Deus te negue por isso. (II, 22) Mas, na realidade, aponta-se uma doutrina que engloba três princípios. A primeira é: “Faz o que queres há de ser o todo da Lei” Mas não é necessário ficar preso à letra deste preceito quase como se ele prescrevesse fazer tudo o que quiseres (como em “Fay ce que vouldras, ou Faça o que você quiser”), porque Crowley se refere à verdadeira vontade a ser descoberta em si mesmo e então realizada. Esta descoberta e esta realização seriam a essência da Obra (o discípulo deve ter jurado antecipadamente à “Grande Besta 666” dedicar-se a ela), como o sinal de que – afirmou Crowley – apenas aqueles que alcançaram tal nível são verdadeiramente homens e senhores, os outros são “escravos” (aparentemente do ponto de vista interior). Quanto ao resto, Crowley falou também de uma autodisciplina, pelo menos no seu próprio aspecto, de uma “moralidade rigorosa mais do que qualquer outra, apesar da liberdade absoluta no que diz respeito a todos os códigos de conduta convencionais”. Na mesma perspectiva, segue-se o corolário “O único pecado é a restrição”, evidentemente no que diz respeito à verdadeira vontade.
O segundo princípio é o “todo homem e toda mulher é uma estrela”, no sentido de que neles se manifestaria ou encarnaria de certa forma um princípio transcendente que conduz, em geral, além de um mero naturalismo “pagão”. Poderíamos pensar na teoria do “Eu” distinto do simples “Ego”. Consequentemente, a ligação com o conceito especial de vontade que acabamos de indicar também parece evidente. Entre outras coisas, Crowley resgata a antiga teoria dos “dois demônios”, fala de um modo de vida destinado a evocar o “demônio bom”, não cedendo às tentações que, em vez disso, submeteriam alguém às mercês do outro demônio, levando à ruína e à condenação, enquanto desde o início alguém seria inspirado no uso correto de técnicas mágicas. De forma dramatizada, pareceria tratar-se aqui, mais uma vez, do princípio profundo postulado pelas concepções do ser humano como “estrela” (ou como “deus”), cuja presença constitui a base para enfrentar as perigosas experiências desta vida.
Finalmente, o terceiro princípio é “O amor é a lei, o amor sob vontade”, onde “amor” significa essencialmente o amor sexual. Isto leva do domínio da doutrina ao das técnicas onde são apresentados os aspectos do Crowleyanismo que podem alarmar mais o profano conferindo-lhe uma coloração orgíaca problemática (mesmo que ainda se possa falar de “satânico” no sentido próprio).
Na forma proclamada por Crowley, o uso do sexo, assim como das drogas, ocupa o centro das atenções. No entanto, é preciso reconhecer que, pelo menos na intenção, tratava-se do uso “sagrado” e mágico do sexo e das drogas, que também era considerado em várias tradições antigas. O objetivo, perseguido conscientemente, é obter experiências do supra-sensível e contatos com “entidades”. Da mesma forma, as coisas se apresentam de uma forma um tanto diferente do que acontece nas periferias do mundo contemporâneo, em simples tom de evasões, sensações e “paraísos artificiais”. Crowley escreve: “Existem drogas que abrem os limiares do mundo oculto por trás do véu da matéria”, sendo esta formulação, no entanto, imperfeita porque, por princípio, não se deve falar de drogas sic et simpliciter (de forma tão simples, sejam elas quais forem) mas sim de um de seus usos muito especiais, vinculados a condições precisas e não facilmente realizáveis.
O mesmo se aplica ao sexo como técnica, para além da generalidade da “religião orgiástica” anunciada no Liber Legis, com uma alusão ao “grande Deus Pã”. Para Crowley, o ato sexual tinha o significado de um sacramento, de uma operação sagrada e mágica; na relação sexual, visa-se, no limite, uma espécie de “ruptura de nível” através da qual se encontra “face a face com os deuses”, ou seja, garante uma abertura ao supra-sensível. É importante que, neste e em outros contextos, Crowley tenha falado de coisas “que para vocês são venenos, na verdade venenos do mais alto grau para serem transformados em alimento” e que o resultado deletério que a forma como ele apontou teve em alguns dos seus discípulos foram explicados com referência a “doses de veneno demasiado grandes para serem transformadas em alimento”. Novamente, acrescenta a condição encontrada numa personalidade excepcional, referindo-se às drogas, de que eram alimento apenas para o “homem real”. Quanto à magia sexual, a técnica frequentemente indicada era a do excesso: no orgasmo e na embriaguez devia-se atingir um estado de exaustão que conduzia aos limites extremos “compatíveis com a sobrevivência”. Mesmo no âmbito das cerimónias evocativas a “adaga mágica” utilizada em conjunto com todos os instrumentos tradicionais de sinais, fórmulas, mantos, pentáculos, etc., contava como “um símbolo de estar pronto a sacrificar tudo”. No ritual secreto da Ordo Templi Orientis crowleyana chamado De arte magica (Sobre a arte da magia), no c. XV, fala-se de uma morte no orgasmo chamada mors justi (a morte do justo). O limite extremo da exaustão e do êxtase orgíaco foram apontados também como o momento de uma possível lucidez mágica do transe clarividente atingido pelo homem ou pela mulher. Assim, no Magical Record of the Beast 666, o Registro Mágico da Besta 666, ele fala de jovens apaixonadas e desenfreadas que, a um puxão “imprevisto por qualquer pessoa, passarão para um estado de calma profunda, distinguível apenas com dificuldade de um transe profético, através do qual começarão a descrever o que elas estavam vendo.”
Como é natural, o que realmente aconteceu em experiências desse tipo, com aqueles planos do invisível contatados, não pode ser estabelecido. É certo que no Crowleyismo a inoculação de aplicações mágico-iniciáticas precisas é precisa, e as referências a ritos ou orientações de tradições antigas são evidentes. Do nível das experiências caóticas, desordenadas e temerárias com sexo selvagem e drogas características dos círculos de jovens à margem do mundo contemporâneo, passa-se para algo mais sério mas, só por isso, também mais perigoso. Crowley teve alguns discípulos que, também no quadro da anunciada “Lei de Thelema”, foram submetidos a testes e disciplinas de todo tipo (em 1920 ele criou também em Cefalu, Sicília, uma “Abadia Mágica” – com a chegada do Fascismo ele foi imediatamente deportado da Itália por causa do que foi dito sobre os acontecimentos na Abadia). Mas os seus destinos não pareciam ter sido os mesmos. Aqueles que foram fortes o suficiente para se manterem firmes, para não se desviarem, disseram que saíram renovados e integrados por estas experiências feitas com a Grande Besta 666; no entanto, fala-se igualmente de outras pessoas, tipos de mulheres, que se desintegraram, que até acabaram em hospitais; parece até que houve alguns suicídios. Nesse caso, Crowley disse que não foi capaz de operar a transformação mágica das forças evocadas, às quais lhe foi dado livre acesso, ou que as doses de veneno foram muito altas para serem transformadas em alimento; por esta razão, essas pessoas foram quebradas. Quanto ao próprio Crowley, ele soube se manter de pé até o fim, morrendo em 1947, aos 72 anos, com todas as suas faculdades lúcidas e normais. Além dos seus discípulos, diferentes personalidades, mesmo de certa categoria (por exemplo, Filler, o notável general do corpo blindado), tiveram contato com ele e dado o clima geral dos nossos dias, é natural que o seu caráter continuasse a exercer um forte fascínio e que as suas ideias fossem frequentemente citadas.
Se a visão crowleyiana pareceria problemática e obscura para muitos, mesmo objetivamente o elemento “satânico”, apesar de tudo o que a Grande Besta 666 exibiu quase teatralmente, não nos parece muito relevante. A coloração correspondente não tem tanto destaque quanto aquela que, fundamentalmente, possui um caráter mágico e em parte iniciático.
SOBRE O TRADUTOR
Ícaro Aron Soares, é colaborador fixo do PanDaemonAeon e administrador da Conhecimentos Proibidos e da Magia Sinistra. Siga ele no Instagram em @icaroaronsoares, @conhecimentosproibidos e @magiasinistra.