Kalas do Espaço Sideral

Fora dos Círculos do Tempo

Por Kenneth Grant, Fora dos Círculos do Tempo, Capítulo 2. Tradução de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares@conhecimentosproibidos e @magiasinistra.

Austin Osman Spare insistiu que a magia não é preta nem branca: “… toda magia é cheia de cores”, disse ele, tentando significar que o preto sombreado em cinza, o cinza branco e o branco (ou espaço) contêm todas as cores. Este espaço constitui a matriz através da qual fluem as forças obscuras do Exterior.

O Grande Vazio (1) não é, portanto, a sombra da manifestação (ou magia), mas sua matriz. Este simbolismo é mostrado nos 16 kalas ou cores, que emanam da vulva de Kali, a Deusa Negra. O preto é o corante da corrupção e, como tal, o kala de um processo alquímico específico que envolve o Dragão Negro, um processo que nunca foi exposto abertamente. O preto é a cor atribuída ao sexo sob o véu do simbolismo noturno que também não foi dado publicamente. Os tratados de numerosos psicólogos limitam seus estudos a uma exploração do “inconsciente”, como se tal coisa existisse. Nada existe fora da consciência. No entanto, existem níveis humanos de consciência subconsciente e superconsciente. Os psicólogos analisam apenas os aspectos fenomênicos da consciência refletidos na mente humana, como “objetos” da consciência. O psicólogo, como cientista, analisa e mede o fenômeno, sendo esta função da ciência. É, portanto, o artista, o gênio criativo, quem deve buscar a fonte da verdadeira subjetividade ou consciência numenal.

É através das fantasias ficcionais modernas, aparentemente destinadas a entreter algumas horas, que certos adeptos se aproximaram do verdadeiro segredo da magia e da consciência criativa, que envolve o uso de kalas, alguns dos quais só recentemente foram “descobertos” pela Ciência ocidental. Um desses seguidores foi o escritor Arthur Machen (1863 – 1947). Em vários de seus contos (2) ele introduz a teoria da reversão protoplásmica, ou processo de retorno aos elementos primordiais. O homem é descrito como descendo através dos estágios dessa reversão até que o tabernáculo humano se misture, se funda e submerja no lamaçal amorfo, mas sensível, do qual emergiu originalmente. Na história intitulada “N”, Machen sugere que este estado primordial é equivalente ao protoplasma descrito por William Law (1686 – 1761), que foi discípulo de Boëhme. O interesse particular que a teoria tem para nós está na sua ligação com uma frase que aparece diversas vezes nos livros transmitidos por Aleister Crowley. A frase em questão, “…o erro do princípio…”, nos lembra o Adão bíblico no Jardim do Éden na época da “queda”. O assunto foi discutido extensivamente em meu livro “O Lado Noturno do Éden” (3). O importante aqui é que o significado oculto da alegoria da queda envolve um sistema mágico de reversão da consciência. Wei Wu Wei, místico contemporâneo e escritor do Budismo Chan, enuncia o significado interno da queda em relação à “Via Negationis”, que cria a condição necessária para a “anoesis”. Isto leva ao conhecimento final da Verdade, a Verdade que está por trás de todas as aparências (fenômenos). Esta é a abordagem metafísica descrita em termos astrais por William Law e, como dissemos, em termos físicos por Arthur Machen.

A nota principal é a escuridão; a escuridão original que deu nome à ciência sutil da reversão, que em tempos posteriores foi deformada na simbologia grotesca da “magia negra” e que na Idade Média tornou-se indistinguivelmente associada à bruxaria. Machen, na introdução de sua história “O Povo Branco”, faz uma distinção muito clara entre os tipos de magia branca e negra. Mas as cores ou kalas provenientes desse contraste e justaposição não são tão claramente discerníveis, talvez pelo fato de não poderem ser explicitamente classificados, nem demonstrados, apenas sugeridos. Por exemplo, é pouco conhecido que o pó vermelho, a flor vermelha de hibisco, o lótus vermelho, a pedra vermelho-sangue ou o “elixir rubeus” dos alquimistas, indicam uma etapa na realização da Grande Obra que envolve uma componente biológico muito especial, simbolizado no Culto da Besta pela Mulher Escarlate, Babalon (4). Além disso, as sagradas cinzas brancas e vermelhas, ou brancas e negras (5), usadas nos rituais do Vama Marga, e referidas nos textos hindus como a “Poeira dos Pés da Grande Deusa”, são as mesmas cinzas brancas e negras que permanecem no altar do sacrifício nos ritos mais secretos de Kali, quando a sanguinária Deusa Negra é adorada.

O pavão e o arco-íris, o “manto multicolorido” e as roupas iridescentes dos Devas resumem a doutrina em sua totalidade. O pavão, símbolo do deus iazidi, é um símbolo dos kalas, idêntico por sua vez ao que é representado pelos chineses sob a imagem do arco-íris, e pelos alquimistas como o vestido multicolorido, que na Bíblia aparece como o manto de muitas cores [NOTA 1]. Os tons iridescentes, que lembram escamas de peixe (6), são os kalas do peixe original (a vagina) que representa tanto as águas da criação quanto o dilúvio vermelho da destruição; Deles emanam seus brilhos variados, de acordo com um código sistemático cuja ordem precisa há muito se perdeu na tradição arcana ocidental.

A restauração desta sabedoria antiga constitui um dos principais objetivos da O.T.O. Interna. Paradoxalmente, estas doutrinas sobrevivem agora apenas nos Tantras Orientais, que absorveram as Tradições Tifonianas do antigo Egito. Neste ambiente os Mistérios Primordiais Africanos floresceram e tiveram como foco a fonte negra de luz branca que irradiava seus tons variados através do prisma dos antigos Mistérios Draconianos do Egito. No meu livro “Cultos da Sombra”, dei indicações mais específicas sobre a natureza dos kalas, onde o negro e o branco, os dois contrastes extremos, são mostrados como fontes dos 14 kalas, perfazendo assim 16 no total. Como disse Spare, “…toda magia é cheia de cor…”.

O Sol e a Lua são a base dessas 16 emanações. No organismo humano, eles são o masculino e o feminino. Sua energização e polarização produzem os kalas que fluem dos órgãos genitais femininos, em momentos específicos da dupla lunação, que constitui o ciclo de 28 dias do mês lunar. A cada um desses dias é atribuída uma vibração particular representada por uma divindade que possui um kala característico. As escalas de cores publicadas por Crowley no Liber 777 baseiam-se, em última análise, neste sistema, embora tenha surgido alguma confusão porque dois dos kalas não aparecem no esquema original. Assim, embora existam 30 kalas, parece haver 32 (16 + 16), sendo os dois extras reflexos do Sol e da Lua na Sacerdotisa, quando ela opera nos caminhos de Daath e Saturno. Os mistérios destes caminhos ou emanações resumem os segredos últimos dos kalas que existem na Tradição Cabalística Ocidental, chegando aqui via Egito, a partir da primordial Gnose Africana. Pode parecer que Mathers, Benneth e Crowley tropeçaram no esquema de cores que forma as colunas 15 a 18 do Liber 777, porque é altamente improvável que tivessem qualquer conhecimento da doutrina dos kalas. Crowley claro que não, pois até o último ano de sua vida ele não tinha em mãos um certo manuscrito raro e secreto (7).

Aspectos relevantes do Srividya (a ciência dos kalas) foram explicados em minha Trilogia Tifoniana, enquanto em meu “O Lado Noturno do Éden”, a síntese subsequente foi expressa ’em uma forma adequada às necessidades dos ocultistas práticos que usam a Corrente Ofidiana’.

A correlação dos kalas, as células oníricas do subconsciente, e os Túneis de Set, foi explicada em “O Lado Noturno do Éden”. Cada célula é ao mesmo tempo gerador e veículo para um ou outro dos 16 kalas e seus respectivos reflexos nos 32 túneis. Cada célula tem no seu limiar um guardião do sono que responde às vibrações do seu nome qliphótico, cor e nota musical. O grimório de nomes e sigilos publicado em “O Lado Noturno do Éden” é a chave para o sistema de controle de sonhos referido na Trilogia Tifoniana (8). O termo “Controle dos Sonhos” denota o controle e a transformação do estado de vigília através da mente sonhadora (subconsciente). Vários sistemas de controle mágico, como o de Austin Osman Spare, envolvem o uso de sigilos e símbolos sensíveis que atuam nas camadas subconscientes, onde não há limites precisos. Contudo Crowley, em seu Liber CCXXXI (9), inclui um mapa preciso dos túneis de Set, baseado na divisão dos Aats de Sekhet-Aaru do antigo Egito, que foram comparados por Budge e outros aos Campos Elísios. A tradução literal de Sekhet-Aahru, entretanto, carrega outro significado mais essencial. Sekhet é a deusa com cabeça de leão, simbolizando o poder feroz e ígneo do sol no hemisfério sul. O nome sekhet é a origem da palavra hindu shakti, que significa “poder”, que muitas vezes é simbolizada por uma mulher ou uma deusa, esta última significando a abundância de poder sobre-humano, neste caso, o poder do calor sexual. Shakti é sempre representada (em esculturas religiosas) como consorte e “meio de expressão” de algum deus específico. A palavra Ru ou Aru era representada nos Cultos Draconianos Egípcios pelo ventre ou útero da fêmea do hipopótamo, da besta das águas, do dragão das profundezas e do Dilúvio. O Aru ou Taru era a porta (10) de acesso ao poder cujo “tarot” é a roda, yoni ou lótus da lei. Os campos (Sekhet-Aaru) são os locais das flores, e as águas desta flor (ou fluido) especial, o Lótus, foram identificadas em todos os cultos antigos com o fluido sexual ou floração, cuja manifestação são os kalas emitidos pela vagina. As divisões de Sekhet-Aahru formam assim as células secretas ou campos de energia do organismo feminino.

As cores mutáveis do Nilo, azul, verde, branco, vermelho, negro, amarelo, etc., foram associadas ao simbolismo da Deusa como o rio da vida que literalmente criou a terra (representada pelo Egito). A famosa lama nilótica, fonte da terra vermelha, foi posteriormente representada na Bíblia por Adão (11).

Este é o esquema básico subjacente à doutrina mágica dos kalas, conforme representado nos Tantras do Oriente (Vama Marga) e do Ocidente (Tarot, Árvore da Vida, etc.). Esses sistemas foram explicados em detalhes em “Cultos da Sombra” e “O Lado Noturno do Éden”, respectivamente. O que se tenta aqui é mostrar a correlação entre as divindades sombrias de Daath e as fórmulas de magia sexual usadas na evocação de espíritos guardiões, anões do sono, habitantes das células ctônicas sob as colinas de Hathor nos Sekhet-Aarhu, e os Túneis de Set no Amenta.

Para ativar uma determinada célula, o mago precisa projetar sua consciência astral e penetrar e impregnar a célula com sua substância sutil. Para isso, ele assume a forma do guardião cujo sigilo está inscrito nas cores apropriadas e cujo nome vibra astralmente no ouvido da mulher que lhe serve de “portão do poder”. A vibração deve persistir até que a forma astral da mulher assuma a do guardião. Ou seja, o mago, penetrando no interior da mulher através de um sistema de visualização intensa e supersensível, entra pela porta do poder (Sekhet-Aarhu) e ocupa a célula do subconsciente representada pelo sigilo.

De acordo com a teoria da reversão protoplasmática, essas células só deveriam ser usadas para confinar os demônios das profundezas, como Dagon, cujo número é 777, e as monstruosas Qliphoth descritas por Lovecraft e outros em conexão com os Mitos de Cthulhu. Com referência às tabelas que aparecem nas páginas 205 e 206 de “O Lado Noturno do Éden”, estas fornecerão ao mago informações suficientes para acessar as fórmulas sexuais que devem ser utilizadas em cada evocação particular.

É necessário perceber que a mulher escolhida para servir como porta de poder deve ser uma encarnação viva das forças astrofísicas necessárias para a operação projetada. Assim, para as evocações dos Profundos (Deep Ones), deve incorporar as energias ou shaktis simbolizadas por um ou mais dos três signos de água (12) do zodíaco, enquanto no caso de erguer uma pirâmide de fogo (13) deve incorporar as shaktis dos três signos de fogo (14). As shaktis ígneas fornecem acesso à terra e às células ctônicas abaixo das Colinas de Hathor. As shaktis aéreas (15) dão acesso aos espaços mais profundos da noite, representadas por Nuit e pelo demoníaco Polvo de cujos tentáculos pendem as ovas estelares de Cthulhu.

O alcance correspondente ao feiticeiro capaz de assumir essas formas qlifóticas impunemente é virtualmente ilimitado. O livro e os comentários de Dzyan apontam para formas incrivelmente antigas de deuses, cujas sombrias sobrevivências ocasionalmente levantam o véu da matéria e se revelam por um momento fugaz como um abismo imensurável, no qual blasfêmias não naturais e inomináveis são misturadas e alimentadas dentro dos limites mais extremos do espaço interior. Ainda assim, nada, literalmente nada no universo ou além dele pode ser antinatural. Como observou Blavatsky: “…Todo o ocultismo é baseado na suposição de que não há nada sobrenatural…”, e é igualmente verdadeiro dizer que não há nada essencialmente antinatural. No Universo “B”, entretanto, como Michael Bertiaux mostrou, todas as leis naturais parecem ter sido abolidas, e o mago às vezes é capaz de cruzar o abismo e de repente encontrar-se no “outro lado” (da Árvore da Vida).

Então, vislumbres do espaço escuro “rolam para dentro”, gerando a vertigem inefável que Austin Osman Spare experimentou naqueles momentos que ele afirmou serem os mais criativos (16). Uma fórmula semelhante parece operar no caso da teoria da Reversão Protoplasmática de Machen, embora a anterior seja do Ar (Espaço) e a última da Terra (Matéria). Esta fórmula pode ser vista operando nas criações de Salvador Dalí, cuja visão às vezes abrange o retrocesso do tempo, típico das dimensões sugeridas por suas pinturas. Sua forma de ilusão sistematizada, baseada na atividade crítico-paranoica da mente delirante, é de certa forma um desenvolvimento da fórmula de Spare de obsessão mágica para a estimulação de atavismos ressurgentes.

Alquimia, obsessão, delírio, reversão e feitiçaria sexual constituem a base do ocultismo criativo, e esses elementos foram entrelaçados por Rimbaud em sua famosa fórmula. Baudelaire, antes dele, havia preparado o caminho com uma teoria da sinestesia que envolvia todos os elementos essenciais para uma materialização última do passado, com exceção do elemento da nostalgia como força dinâmica. Foi Marcel Proust quem incorporou esse elemento na prosa, enquanto Austin Osman Spare o desenvolveu nas artes visuais. Todos esses elementos foram combinados em Crowley para produzir a performance mais intensa já tentada por um iniciado ocidental.

Dois ilustres adeptos abriram o caminho para as realizações de Crowley, o mago francês Eliphas Levi e a ocultista russa Helena Blavatsky. Crowley deixou um registro desses temas em suas “Confissões” (17), às quais o leitor pode recorrer. Coloquei grande ênfase no fato de que o ano de seu nascimento, 1875, coincidiu com o nascimento da Sociedade Teosófica fundada por Blavatsky, e com a morte de Eliphas Levi, de quem Crowley afirmava ser uma reencarnação.

Foram Blavatsky e a Sociedade Teosófica que fizeram o Livro de Dzyan e seus comentários sobreviverem na forma de “A Doutrina Secreta”, que é sem dúvida a contribuição mais valiosa para a literatura ocultista que apareceu no Ocidente antes dos escritos de Crowley.

Eliphas Lévi, a quem Lovecraft descreveu como uma “alma enigmática que se arrastou por uma fenda até uma porta proibida e vislumbrou as terríveis visões além do vazio” (18), foi um dos poucos iniciados a exibir os elementos essenciais do ocultismo criativo, ao contrário das fórmulas moribundas dos grimórios medievais. Crowley foi a flor, não apenas da Golden Dawn, como Krishnamurti foi da Sociedade Teosófica, mas de todo o ocultismo ocidental e sua literatura. O espírito vital desta literatura não se baseia em textos mágicos ortodoxos, mas também nos produtos dos chamados artistas criativos “decadentes”, começando com Baudelaire e culminando (via surrealismo) na magia criativa de Crowley, Spare, Gurdjieff e as Escolas do Novo Aeon de visionários fantásticos representadas hoje por artistas como Dalí, Ernst, Brauner, Tanguy e outros.

NOTAS AO CAPÍTULO 2:

1.- O Grande Inano; o Aín do sistema cabalístico.

2.- Veja “O Grande Deus Pã” e “A Luz Íntima”.

3.- Frederick Muller Ltd.

4.- Ver “Aleister Crowley e o Deus Oculto” cap. 7.

s.- Negro e Vermelho são intercambiáveis na kalografia dos mistérios.

6.-O peixe é o zoótipo representativo de Dagom, e mais tarde foi o de Cristo ou “salvador” do dilúvio.

7.- Ver “O Lado Noturno do Éden”, pág. 109 e segs.

8.- Ver em particular “Aleister Crowley e o Deus Oculto”.

9.- Publicado originalmente no Equinox, Vol. I No. 7.

10.- Tara, a forma tibetana de Shakti.

11.- ADM (Adam, Adão) significa “terra vermelha”. Veja o “Renascer da Magia”.

12.- Câncer, Escorpião, Peixes.

13.- Veja “Pirâmide Brilhante” de Arthur Machen.

14.- Áries, Leão, Sagitário.

15.- Simbolizado pelos signos de Ar: Gêmeos, Libra, Aquário.

16.- Capítulo “O Lado Noturno do Éden”. 11 e 12. Desde que escrevi este livro, fui informado de uma variação dessa fórmula, desencadeada pelo “mergulho atmosférico” de Gail Shelton em 1978.

17.- “As Confissões de Aleister Crowley”, editado e anotado por Symonds e Grant.

18.- “O Estranho Caso de Charles Dexter Ward”, capítulo. III.

SOBRE O TRADUTOR

Ícaro Aron Soares, é colaborador fixo do PanDaemonAeon e administrador da Conhecimentos Proibidos e da Magia Sinistra. Siga ele no Instagram em @icaroaronsoares, @conhecimentosproibidos e @magiasinistra.

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