Práticas Sexuais Secretas no Taoísmo Chinês

Metafísica do Sexo

Por Julius Evola, Tradução de Fernando Ribeiro de Melo. Revisão de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares@conhecimentosproibidos e @magiasinistra.

Constitui a nossa principal fonte de informação o material reunido por H. Maspero num longo e bem documentado ensaio acerca das práticas sexuais no taoísmo chinês, a que aqui nos referiremos essencialmente (64). Como base, deveremos contudo, ter presente também a chamada «arte secreta de alcova», corrente no Chinês antigo, e que foi estudada por R. H., van Gulik (65).

Antes de mais nada, será oportuno explicar quais são, de um modo geral, as realizações consideradas pelo Taoísmo. Embora Maspero seja uma autoridade em matéria de sinologia, pensamos que não viu o problema corretamente ao afirmar que no taoísmo a concepção «mais corrente» se refere à imortalidade ligada à «solução do cadáver» (shi kiai) : trata-se do caso em que o taoísta ao morrer não deixa atrás de si um cadáver mas sim uma espada ou uma vara-ceptro, e ressuscita num corpo imortal, transformação essencial do corpo que morre. Segundo Maspero, o ensinamento esotérico taoísta referia-se, ao contrário, a práticas relativas à respiração e ao sexo, o que não se verifica. A «solução do cadáver» foi considerada também por outras tradições, não como uma idéia religiosa comum, mas sim como a finalidade suprema que um iniciado de grau muito elevado pode esperar atingir. O próprio cristianismo fala-nos do Cristo ressuscitado, cujo corpo desapareceu do túmulo, e S. Paulo, que vai buscar certamente esta idéia aos Mistérios, menciona o «corpo da ressurreição». Poderemos associar a este fato o tema dos personagens míticos, raptados ou desaparecidos de forma mística, que figuram em inúmeras tradições e lendas. Entra nesta mesma ordem de idéias a doutrina taoísta do shi kiai.

Se, por um lado, as práticas secretas a que se refere Maspero podem fazer parte de processos utilizados para preparar esta realização singular — a transmutação do corpo a ponto de o subtrair à sua corruptibilidade natural e de o desmaterializar sem resíduo — poderão, por outro, situar-se num nível muito mais baixo. Com efeito, quando nestas práticas se fala da obtenção «vida eterna» é evidente que em determinados casos se trata da «vida longa» — ch’ang sheuy — isto é, duma espécie de prolongamento extranormal da existência individual, com a neutralização dos processos ordinários que alteram a constituição físico-vital e subtil do organismo humano. Poderíamos ser levados a interpretar neste sentido as operações de retenção, fixação e nutrição do princípio vital original de que se ocupa, como já vimos, o tratado sobre o «Mistério da Flor de Ouro». Verificar-se-ia então uma diferença nítida relativamente ao objetivo das práticas tântricas e yóguicas hindus, pois estas tendem mais para a superação de toda a condicionalidade e para a «Grande Libertação» — mesmo admitindo a possibilidade de aí chegar ainda em vida, e no corpo. Por outro lado, nas práticas taoístas em questão, encontra-se igualmente a operação de união do masculino e do feminino, do yang e do yin, equivalentes à realização do estado não-dual. Estes ensinamentos fornecem-nos, portanto, o sentido duma oscilação talvez relacionada com o fato de, como se pode ler num texto: «as instruções mais importantes ao taoísmo não se encontram no texto escrito dos livros, mas sim em fórmulas transmitidas oralmente» (66).

Maspero distingue as práticas que aplicam a respiração daquelas que utilizam o sexo como meio. Limitar-nos-emos a mencionar as primeiras, pois trata-se em parte de ensinamentos análogos àqueles que já tínhamos considerado ao analisar a transmutação endógena. Reaparece, de novo, a noção do «espaço da força» situado na região yin do corpo (a parte do corpo que está acima do diafragma é yang e masculina, a que se encontra abaixo é yin, e feminina) precisamente três polegadas abaixo do umbigo; estas correntes designam-no pela expressão particular de «o domínio do Cinabro Inferior», tan-lien. O acesso a este domínio está obstruído (por uma entrada que as «divindades não abrem facilmente»). A prática consiste, na sua essência, a controlar a respiração, de modo a dominar o princípio vital do fôlego e, uma vez ultrapassado o obstáculo, a fazê-lo atingir o domínio do Cinabro Inferior. O fôlego encontra-se, então, com a Essência, também denominada «o Fôlego da Mulher misteriosa»; assim integrado, se o «encerrarem», isto é, se for retido durante muito tempo, produzirá uma energia hiper-física que se difunde e circula como um fluido por todo o corpo, regenerando-o e tornando-o vivo. Considera-se, por vezes, também um processo ascendente por meio do qual a força do centro inferior é conduzida para o lugar que os textos denominam o domínio do Cinabro Superior (localizado na cabeça); essa força transforma-se então num fogo «para incendiar o corpo, para que o corpo tenha o esplendor do fogo». Tudo isto se relaciona com a «fusão de forma (física)», isto é, do soma, do corpo; fala-se de fusão por analogia com a mudança de estado que o fogo produz nas substâncias metálicas sólidas. Seremos assim conduzidos de novo à concepção dum corpo transformado que domina a morte (67). Encontram-se nestes ensinamentos taoístas certas correspondências com os dos Kundalinî-yoga: o centro inferior, a natureza ígnea da Kundalinî, a obstrução da entrada da via axial, o processo ascendente, a união do masculino e do feminino (no yoga: Shiva e Shakti) no cimo da cabeça.

Passemos agora das práticas taoístas com a respiração às do sexo relacionadas com a mesma tradição. Tal como o tantrismo, o taoísmo professa o princípio de que, se para uns a utilização do sexo é deletéria, para outros — para aqueles que estão de posse do conhecimento — poderá representar um meio de realização espiritual e de salvação. «Unir-se a uma mulher — diz-se —é como guiar um cavalo a galope tendo as rédeas podres.» Contudo, a união com a mulher não poderá causar prejuízo àquele que sabe, podendo até ser uma vantagem para ele. «O imperador Giallo — pode ler-se no Yu-fang-che-yao — deitou-se com mil e duzentas mulheres e tornouse imortal: as pessoas comuns têm uma única mulher e (ao unirem-se a ela) destroem a sua própria vida. Ter o conhecimento ou não o ter: como poderiam não depender desse fato resultados opostos?» (68).

O conhecimento em questão refere-se a uma doutrina secreta; o mesmo texto afirma-nos assim (I-b) que «os Imortais transmitem o processo uns aos outros; bebendo sangue, e jurando, não o transmitir ao acaso». É o que repete o mestre Teng Yun-tze: «Esta técnica é absolutamente secreta; não a transmiteis senão aos sábios!» (69) Um outro mestre do IV século, Ko-Hong, depois de ter sublinhado a grande importância das «práticas de alcova» (fang-chong-che-fa) fala nos seguintes termos do objetivo mais elevado a ter em vista: «Os Homens Reais transmitem esta receita oralmente; na sua origem não era escrita; se se desconhecer este processo eficaz não se poderá atingir a vida eterna («Pao-pío-tseu») (8, 3 b) mesmo que se empreguem as drogas mais famosas.» Não se deve, pois, pensar que se possa conseguir, unicamente através dos textos, aprender com clareza esta questão. O mestre taoísta Ko-Hong, que acabamos de citar, menciona os diversos objetivos que procuram atingir aqueles que utilizam o sexo duma maneira não profana. Para uns trata-se de separar o desgaste da energia vital e de obter a longevidade; para outros, de reforçar o princípio yang em si próprios e de dispersar o yin, a finalidade mais importante seria, contudo, a de fazer retroceder a Essência para restaurar o cérebro. É este o termo traduzido por Maspero (70), mas quer o texto tenha empregado ou não a palavra «cérebro» é evidente que a operação a que se refere é a mesma que mencionamos ao tratar das práticas relativas à respiração; não se trata do cérebro físico, mas aquilo a que se chama o «domínio do Cinabro Superior», situado na cabeça. Devemos, com efeito, recordar que, de um modo geral, toda a referência de caráter aparentemente físico ou fisiológico contida nos ensinamentos deste gênero, nos remete na realidade para uma «anatomia» o uma fisiologia hiperfísicas.

Embora se faça a distinção entre estas finalidades diferentes, o fundo comum das práticas permanece sempre a união do yang e do yin, do princípio masculino e do feminino contidos um no homem e o outro na mulher. Pensa-se que um ou o outro objetivo é atingido mediante o regime diferente do estado de união no ato sexual. Emprega-se uma expressão curiosa e também sugestiva relativamente à prática sexual, ou seja «o enrolar do Dragão e o jogo do Tigre fêmea». O Dragão simboliza o yang e corresponde ao homem; o Tigre fêmea simboliza o yin e é encarnado pela mulher que se utiliza. Devemos, contudo, recordar, que ao contrário do que sucede em outras tradições, o dragão é representado na tradição chinesa como um animal duplo quer terrestre e das águas, quer celeste e real. Quando simboliza o homem segundo a sua dupla natureza, seria possível relacionar, eventualmente, com os desenvolvimentos da experiência interior no jogo do «Dragão e do Tigre-fêmea» as seis posições do yang, atribuídas pelo comentário do primeiro hexagrama de Yi-King aos seis signos Yang; o Dragão partiria de baixo, da fase em que está escondido e onde só é possível pressenti-lo, passa para a fase em que está visível, e pouco a pouco atira-se, eleva-se no éter e desaparece por fim.

No que diz respeito à escolha da mulher, dá-se bastante importância à idade: não deverá ter mais de trinta anos, mas o ideal será abaixo dos dezoito ou dezenove. Tal como sucede no tantrismo, também aqui não deverá ser mãe nem nunca ter tido um filho. «Mesmo que se trate duma jovem, desde que tenha tido um filho, já não poderá ser útil.» (Yu-fang-pi-kiue, I a).

Uma das características particulares deste método é a prescrição que manda mudar a mulher, e toda urna série de textos insiste neste fato considerando-o essencial. «E necessário mudar de mulher depois de cada excitação, é com a mudança que se atinge a vida eterna», diz o texto já citado (1-b) acrescentando: «Se nos unirmos sempre com a mesma mulher o fôlego do yin diminuirá e o proveito será reduzido… a Essência e o fôlego da mulher enfraquecerão pouco a pouco e poucos frutos poderá, assim, oferecer ao homem (71).» Esta prescrição é até interpretada no sentido de se utilizarem muitas jovens, uma a seguir à outra, podendo-se ler no texto : «Quando se mude de mulher várias vezes o benefício será maior e se numa noite se mudar dez vezes de mulher atingir-se-á o grau supremo e excelente (da operação).»

Isto faz-nos, todavia, pensar não tanto em processos visando verdadeiramente um objetivo iniciático, isto é, transcendente, como em práticas de magia sexual que poderiam mesmo aproximar-se do domínio do vampirismo «psíquico» masculino. Esta idéia surge no nosso espírito não somente devido às referências à longevidade, afastamento de doenças, à «sensação ligeira» e «subtilizada» do corpo, contidas nos textos como conseqüência destas práticas (72), mas também, e sobretudo, devido ao fato de se recomendar, por vezes, não se dever fazer uso de jovens já ao corrente desta técnica; segundo P’eng-tsu, a razão desta recomendação deve-se ao fato de a mulher poder tirar, em seu proveito, partido da união para alimentar o yin e tornarse, ela, imortal: uma jovem conhecedora procurará o seu próprio desenvolvimento e não terá utilidade para o seu companheiro (73). Não se poderia obter então um contato bilateral, uma experiência onde, quer o homem, quer a mulher, tirassem proveito da sua fusão nos estados que se desenvolvem durante o ato do amor. Dever-se-ia pensar que neste caso o homem procurava simplesmente uma substância fluídica complementar para absorver ou empregar como excitante para reforçar em si a qualidade yang, ou qualidade «Dragão», o princípio da virilidade perante a qualidade yin ou «Tigre» da mulher. Preferiria que a sua companheira não estivesse iniciada no sentido secreto, mágico, do ato sexual, para impedir que fosse ela a tirar daí proveito e, que, no conjunto, fosse ao contrário o yin que prevalecesse. Se se tratasse simplesmente dum fluido feminino que se teria de absorver para alimentar o princípio vital, seria mais fácil compreender a utilização quase em série de numerosas jovens. Na Índia e no Tibete, num enquadramento análogo, são igualmente conhecidas certas técnicas sexuais para prolongar a vida: na sua essência, será preciso que o homem, ao unir-se à mulher e embora provocando o orgasmo, não sinta qualquer prazer; isto conduzirá, de certo modo, à absorção vampírica de energia vital feminina (74). De resto existem nos Upanishad vestígios dum processo «absorvente» análogo, que tende a subtrair o «sêmen» à mulher no decorrer do ato sexual para que ela não conceba. O texto diz que para atingir este fim o homem, com a boca unida à da mulher e penetrando-a, deverá expirar e depois inspirar (provavelmente retendo o fôlego), dizendo mentalmente a fórmula: «Com a minha força, com o meu sêmen, eu tomo o teu sêmen» (sobre o «sêmen feminino» ver o que já dissemos no § 54) (75). Este texto indica também um pormenor análogo àquele que é considerado no taoísmo, pois faz-se depender da posse do conhecimento a vantagem do homem ou da mulher quando se unem sexualmente: se o homem detém esse conhecimento aproveita-se das «boas obras da mulher» à qual se une; se, pelo contrário, não está consciente, será a mulher que se apropria das do homem. Acrescenta-se que até homens do grau dos brâmanes estão destituídos de virilidade se se unirem a uma mulher sem terem esse conhecimento (76).

Existem, contudo, razões para pensar que nas práticas taoístas secretas este todo não termina duma forma tão problemática. Sabemos, entre outras coisas, que a técnica principal não difere muito da técnica tântrica. A primeira fase desta técnica denomina-se a arte real de igualar, harmonizar ou misturar a respiração; chang-K’i chen-chu; constitui a designação técnica dos preliminares eróticos tendentes a reaviver o magnetismo natural que se acende através da relação yin-yang até a um grau especial de exaltação e de sintonia dos dois. Não é senão depois da intervenção deste estado, alimentado durante um certo tempo, que se passará à união dos corpos (Yu-fang che-yao, I b). É possível que com estes preliminares se tenda à condição que, para ser realizada segundo o ritual tântrico que citamos anteriormente, implica dever passar-se um certo tempo na intimidade da mulher, abstendo-se no entanto de contatos físicos. Como afirmamos, o regime do ato sexual huo-ho não difere muito, a este respeito, do regime tântrico: ao possuir a mulher, o homem não deverá chegar a emitir o sêmen ( 77) e se o processo de ejaculação estiver já em curso, deverá inibi-lo e fazer regressar o sêmen para «reter a Essência» — esta Essência corresponde visivelmente à vîrya e ao hindu, ao princípio da virilidade mágica do ensinamento hindu. No «Su-nui-king» diz-se justamente : «O essencial da técnica consiste na união com diversas mulheres sem emitir a Essência ( 78).» Trata-se de despertar a força primária (a Essência); desde que o ato de amor a ponha em movimento (um texto diz: «deve tornar-se muito agitada») deverá suspender-se o processo de ejaculação — para tal estão previstos em certos textos métodos físicos extremamente drásticos. Dá-se então o processo de retrocedimento; a Essência despertada e retida sobe ao longo da coluna vertebral para o «cérebro». É aquilo a que se chama «a arte de fazer regressar a Essência para que ela se reintegre no (centro situado no) cérebro — huan-tsing pu-nao» (Yu fang che-yao, I b) ( 79). «Penetrar somente, sem emitir», é a máxima repetida. As instruções de Lieu King são: depois da harmonização da respiração do homem e da mulher «penetrar quando (…) está fraco, e retirar-se quando está duro e forte», enquanto que outro texto afirma: «Aquele que entra forte e sai fraco, perecerá, mesmo que tivesse tido um destino melhor.» (Yang-sing yen-ming lu, II, 13-a-b). Maspero coloca entre parênteses como sujeito gramatical da frase precedente (…), phallus, o órgão masculino (denominado nos textos a «haste de jade»). Esta interpretação parecenos, contudo, assaz grosseira; através dela é difícil imaginar o curso que na prática e no plano físico os acontecimentos vão tomar logo de início. É mais provável que, na sua essência, se trate mais dum estado e duma força do que do órgão sexual, mais do princípio yang do homem, que encontrando-se «fraco» no primeiro contato com a mulher se reforçará pouco a pouco, no decorrer da operação mágica, dominará o yin e sairá «endurecido» da experiência, sendo esse um dos objetivos que os textos indicam claramente. O ritualismo é aqui aplicado de tal modo que, por ser oitenta e um o número completo yang, esse número deveria também, na prática perfeita, corresponder ao número de movimentos que «a haste de jade» executa, nas «cordas do alaúde» (o órgão sexual feminino) (80): não é concebível senão como uma mecanização em absoluto paralisante, a não ser no caso de situações muito especiais, em que, de modo involuntário, a realização intensamente vivida dum significado leve espontaneamente, diríamos até magicamente, a uma estrutura simbólica precisa, correspondente, ao gesto físico.

Teng Yu-tse, personagem lendária de «imortal» que teria vivido durante a dinastia Han no século II, menciona a dupla finalidade: «diminuir o yin para aumentar o yang» e «coagular o licor da Essência» (é evidentemente o mesmo que dizer: fixar a vîrya) ( 81). Maspero transmite-nos a advertência de que, tal como sucede com as práticas relativas à respiração, estas também não deverão ser afrontadas sem uma preparação adequada. Devem, além disso, escolher-se dias bem determinados para executá-las; existindo para os taoístas um conjunto de interdições baseadas na astrologia — são interditos, por exemplo, o primeiro e o último dia do mês, os períodos do primeiro e do último quarto de Lua, e ainda o da Lua cheia; acrescentando outras datas e circunstâncias consideradas não propícias, conclui-se que estão excluídos para a «união mágica do Dragão com o Tigre fêmea» (82) praticamente duzentos dias por ano. Prevêem-se também horas favoráveis: a união com a jovem deverá efetuar-se à «hora do fôlego vivo yang, e depois da meianoite», sem que se esteja não embriagado nem demasiado enfartado com alimentos; encontramos aqui, de novo, e entre outras coisas, a ligação, já mencionada, entre a mulher, o eros e a noite (§ 21). A prática supõe uma capacidade de meditação e uma concentração mental intensas. Não se encontram aqui, tal como sucede na Índia e em outros locais, processos preliminares de sacralização, mas é explicitamente afirmado que a operação se deverá efetuar num estado diferente do da consciência comum de vigília. «De cada vez que se executa este ato — diz-nos Teng-tse — deverá entrar-se em meditação; é necessário perder, primeiro a consciência do corpo e, seguidamente, a do mundo exterior (83).» O que equivale a dizer que é preciso entrar num estado de transe ativo, para que, ao executar as ações materiais e, evidentemente, sem ter perdido a sensação da mulher e do corpo da mulher, a experiência se desenrole, em substância, no plano subtil e hiper-físico. No que se refere à parte mais importante, a subida da Essência para a sua sede superior, depois da suspensão e desvio da força despertada da direção ao longo da qual se produzirá a ejaculação do sêmen na mulher, será necessário acompanhar a prática com uma atitude mental que permita seguir e dirigir o processo para o interior de si próprio (84).

O mesmo Teng Yu-tse refere-se também a uma invocação (85) segundo a qual «os homens deverão manter (o espírito fixado) nos rins, retendo a Essência resolutamente e distilando a respiração, a qual, seguindo a coluna vertebral subirá em contracorrente para o Ni-Huan; é o que se chama «fazer regressar à origem, huan-yuan. «As mulheres deverão, ao contrário, manter (o espírito fixado) no coração, nutrindo os espíritos, distilando um fogo imutável (o rajas ou tejas, na terminologia hindu) fazendo descer o fôlego dos dois seios até aos rins, donde de novo se elevará ao longo da coluna vertebral para se dirigir igualmente para o NiHuan ( 86). A isto se chama a «transformação do Real», hua-shen. Após cem dias, chegar-se-á à transcendência. E praticando durante muito tempo, chegar-se-á espontaneamente ao Homem Real e atravessar-se-á os séculos vivendo eternamente. É o método para não «morrer» (87). Reaparece a propósito deste «não morrer» a ambigüidade já por nós sublinhada: não se compreende bem se tudo se reduz à conquista da longevidade e à confecção duma espécie de elixir alquímico (encontram-se, por vezes, com efeito, expressões como: «Quer sejais jovens o velhos, tornareis a ser adolescentes») (88) ou então que uma espécie de reintegração de ordem também física e «vital» seja considerada como a conseqüência duma realização de ordem mais elevada, ou seja, a realização da vida imortal no sentido próprio, transcendente. Deveremos, perante ambigüidades deste gênero, recordar sempre o aviso contido nos textos, de que a essência destes ensinamentos iniciáticos não era transmitida senão por via oral.

Nas informações recolhidas por Maspero não se encontram indicações acerca dos perigos inerentes às práticas sexuais de união do yin e do yang. Existem, contudo, razões para supor que elas se expõem igualmente ao risco duma intoxicação erótica, quando, devido ao desfalecimento do homem na união mágica, for o yin, ou qualidade Tigre atuando na mulher, que ocultamente domina o yang ou qualidade de Dragão a atuar no homem. Como já tivemos a ocasião de indicar, talvez seja esse o motivo do conselho de não utilizar mulheres jovens iniciadas no segredo da prática, pois poderiam tirar daí vantagens que resultassem num perigoso desenvolvimento do yin; o que invertiria completamente a polaridade da prática.

À parte as operações sexuais individuais, isto é, executadas por um casal isolado, são mencionadas práticas coletivas em numerosos textos taoístas, que parecem ter sido constituídas por uma mistura de antigos ritos orgíacos sazonários (primaveris e outonais) com as técnicas propriamente iniciáticas que acima indicamos. Assinalavam-se como sendo propícios para estes ritos coletivos os dias de Lua nova e Lua cheia, dias que estavam, ao contrário, interditos para os ritos sexuais individuais. A alusão de que visam a libertar dos pecados e a afastar as desgraças que, segundo a «lei das ações e das reações concordantes» podem derivar das ações do indivíduo, faz-nos pensar na existência dum objetivo de absolvição ou purificação, obtido através da imersão no informe (nas «Águas») a que nos referimos ao estudar o sentido último dos ritos orgíacos em geral. Existe, contudo, uma diferença: até nas práticas coletivas se devia observar no decorrer do ato sexual um regime de não emissão do sêmen. Pode ler-se a este respeito no Siao tao luen: «Aqueles que executam esta prática realizam a Fórmula Real no Domínio do Cinábrio; mas respeitam o Segredo-Proibido e não emitem na via (89).» O princípio utilizado é o da promiscuidade: com mais força de razão, nada se deverá, aqui, opor à troca de mulheres. Quanto aos objetivos, esse mesmo texto indica igualmente o de assegurar uma força protetora («favorável») contra todos os perigos, influências hostis, demônios. Se o efeito que se procura aqui obter é também a realização da pura qualidade masculina yang, poderíamos reconhecer neste fato um paralelo com a base das antigas idéias romanas a propósito do poder mágico e exorcizante do phallus. De qualquer modo, não é fácil conceber a coexistência dum regime de orgia coletiva como de atos sexuais sem emissão de esperma. Poderemos, quando muito, imaginá-lo no enquadramento duma cadeia mágica convenientemente organizada e articulada (com as «rodas» tântricas que indicaremos mais adiante) e não duma promiscuidade efetiva. Os textos lembram-nos também, a este propósito, que se trata de «coisas que não podem ser expostas nos seus pormenores» (90); embora seja indubitável que, em variados casos, as práticas coletivas devem ter degenerado, e vários autores deplorem que no período após os Wei e os Tsin tenham elas dado origem entre os taoístas ao nascimento de crianças (91), o que implica evidentemente o fato de se terem abandonado ao curso normal, «úmido», dos atos sexuais humanos.

NOTAS

64 H. MASPERO, Les procédés de «nourrir l’esprit vital» dans la réligion taoiste ancienne, em «Journal Asiatique», v. CCXXIX, fasc. de Abril-Junho, Julho-Setembro, 1937.

65 R. H. van GULIK, Erotic colour prints of the Ming period with an essay on Chinese sex life, Tóquio, 1951, e também Sexual life in ancient China, Leida, 1961.

66 MASPERO, pág. 199. Parece que os dois fatos são frequentemente associados no sentido de «depois de ter vivido longamente» passa-se para a morada do «Senhor das alturas» que também se confunde com o Grande Princípio (T’ai-she) assim como com a transcendência e com a imortalidade tomadas no sentido próprio. Encontra-se uma opinião idêntica também em Chuang-Tze.

67 Ibid., págs. 208, 213-214, 234, 245-246, 394-395.

68 Ibid., pégs 380-381.

69 Ibid., pág. 386. Afirma-se também: «Poucos são aqueles que podem praticar esta arte, e assim não ousam divulgá-la» (in van GuLik, cit., pág. 41).

70 Ibid., págs. 409-410.

71 Ibid., págs. 295-296. Contudo esta opinião encontra-se também nos antigos tratados correntes sobre a arte de alcova, onde se afirma: «Quem ignora esta arte e se une somente com uma ou duas mulheres, morrerá depressa» (cfr. van GuLIK, cit., págs. 17, 42).

72 MASPERO, pág. 384.

73 Ibid., pág. 396.

74 Cfr. A. DAVID-NEEL, Magie d’amour et magie noire, Paris, 1938, págs. 104-105.

75 Brhadâranyâka-upanishad, IV, iv, 10.

76 Ibid., IV, iv, 4.

77 Este procedimento era já freqüentemente recomendado nos tratados correntes sobre o sexo, salvo quando se procurava deliberadamente a procriação; devia, contudo, levar-se sempre a mulher ao orgasmo («até a fazer gritar», diz-se num texto — Tung-hoüan-tzü, VII — cfr. VAN HULIK, págs. 8, 20, 33, etc.). Este autor pensa que os taoístas haviam dado a esta técnica uma orientação «cruel», tanto assim que chamavam à arte de alcova a «doutrina perversa» (hsien-chiao) e a acusavam de «provocar muitas vezes a morte das suas infelizes vítimas» das quais se pretendia extrair o «feminino primordial» (YÜan-p’iu — cit., págs. 11, 12). Deve porém recordar-se que VAN GULIK se baseou a este respeito nos boatos malévolos dos ambientes hostis ou profanos.

78 MASPERO, op. cit., pág. 384.

79 Ibid., pág. 385.

80 Ibid., pág. 384. Nos tratados de erótica figura também uma relação entre os números simbólicos (pares e impares) do Yin e do Yang e dos movimentos a executar dentro da mulher: prescreve-se assim que se executem grupos de quatro (ou oito) movimentos lentos, seguidos de um movimento vigoroso e profundo (4+1=5; 8+1=9) números ímpares yang, parando quando a mulher tem o orgasmo e grita, recomeçando depois. (Cfr. van GuLik, págs. 43, 55).

81 MASPERO, pág. 386. Talvez se possa associar a isto a fórmula geral de vivificar a força yang em todo o corpo, de manter íntegro no seu fluido o que também se concebe como um coagular ou fixar — cfr. C. PUNI, Taoismo, Lanciano, 1922, págs. 117-118.

82 Ibid., págs. 397, 400

83 Ibid., pág. 386.

84 Ibid., pág. 218, onde se fala da faculdade da visão interior — ni-she ou nei-kuan — graças à qual é possível apercebermo-nos do interior do corpo, a ponto de podermos guiar as operações. Nos textos não se fala desta visão como de uma faculdade extraordinária.

85 Eis o texto: «Que a Grande Deusa do Augusto Supremo ao coagular os humores torne o Transcendente duro como um osso! Que os seis sopros do Grande-Real-que-não-tem-um-mais-alto regressem ao interior. Que o Velho Mistério da Essência Superior faça a essência regressar para se reintegrar no (centro do) cérebro! Fazei de modo que eu una (o yin e o yang ao unir-me com uma mulher) que o embrião se funda, e que a Jóia seja preservada.» (MASPERO, pág. 386).

86 Neste caso considera-se evidentemente a comparticipação consciente da mulher e o conhecimento, da sua parte, da finalidade deste processo em oposição aquilo que vimos ser recomendado por outros textos (segundo os quais a mulher deveria ignorar a operação oculta para a qual serve de meio).

87 MASPERO, op. cit., pág. 386.

88 Ibid.

89 Ibid., págs. 404-405.

90 Ibid., pág. 405.

91 Ibid., pág. 409.

SOBRE O REVISOR

Ícaro Aron Soares, é colaborador fixo do PanDaemonAeon e administrador da Conhecimentos Proibidos e da Magia Sinistra. Siga ele no Instagram em @icaroaronsoares@conhecimentosproibidos e @magiasinistra.

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