O Culto de Pyrena

Belisana, Os Escolhidos e A Efígie de Pyrena

Por Nimrod de Rosário. Tradução de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares@conhecimentosproibidos e @magiasinistra.

Foi a Promessa da Deusa que dividiu a semente da maçã para que surgissem várias flores diferentes, flores que revelariam o caminho da perfeição aos homens que se entregassem a Ela e abraçassem Seu Culto.

A palavra “frio” foi adicionada ao título da Deusa, significando que Belisana era agora “a Deusa do Fogo Frio”. Eles explicaram essa mudança como uma revelação local da Deusa.

Após sua chegada à Península Ibérica, os Golems tentaram, em inúmeras ocasiões, ocupar a Floresta Sagrada e controlar o Culto da Deusa do Fogo Frio.

Devemos ver nessa mudança algo mais do que um simples acréscimo de palavras: foi a primeira vez que um Culto teve a possibilidade de confrontar e superar o medo, ou seja, o sentimento que em todos os Cultos assegurava a submissão do fiel. O medo dos Deuses é um sentimento necessário e essencial a ser mantido vivo para garantir a autoridade terrena dos Sacerdotes. Se o homem não os temer, acabará se rebelando contra os Deuses; mas primeiro, ele se levantará contra os Sacerdotes dos Deuses.

No entanto, essa mudança não será vista a menos que primeiro esclareçamos algo que não é tão óbvio hoje: o fato de que em todas as línguas indo-germânicas, “frio” e “medo” têm a mesma raiz, o que ainda pode ser intuído, por exemplo, em “escald-frío” (de terror).

Bem, naquela época, a palavra “frio” era sinônimo de “terror” e, consequentemente, o que o novo Culto queria dizer era que um terror sem nome se instalaria no coração do crente como “a Graça da Deusa”; e que esse terror traria sua perfeição.

Assim, Belisana, a Deusa do Fogo Frio, também se tornou a “Deusa do Terror“, um título que, embora os Senhores de Tharsis não pudessem saber, pertencia em tempos antigos à mesma Deusa, pois a esposa de Navutan também era conhecida como “Frya, Aquela que Infunde Terror na Alma e Ajuda ao Espírito“.

Após sua chegada à Península Ibérica, os Golems tentaram, em inúmeras ocasiões, ocupar a Floresta Sagrada e controlar o Culto da Deusa do Fogo Frio, mas sempre foram repelidos pela inveja e teimosia da loucura mística dos Senhores de Tharsis.

A reação dos Golems desencadeou aquela campanha internacional que incentivou a conquista de Tharsis, que culminou na perigosa tentativa de invasão fenícia a partir das Ilhas Baleares e Gades, ou Cádiz.

Mas os Senhores de Tharsis convocaram os lídios e os forçaram a abandonar seu plano de conquista por pelo menos os quatro séculos seguintes.

Da aliança entre ibéricos e lídios surgiu o “Império de Tartessos“, que logo se expandiu por toda a Andaluzia, a “Tartéssida“, e privou os fenícios de colônias costeiras em seu território.

As Ilhas Baleares e a ilha de Leão, sede de Gades, foram isoladas do continente porque os Tartessianos só lhes permitiam manter um comércio escasso através de seus próprios portos.

Qual seria a próxima reação dos Golems a esse poder que se desenvolvia além do seu controle e frustrava todos os seus planos? (Basta lembrar que os lídios eram mais “cultos” que os ibéricos, ou seja, mais civilizados culturalmente, enquanto os ibéricos mais “incultos“, ou seja, mais bárbaros, eram mais “cultivados” espiritualmente que os lídios, possuindo mais sabedoria do que conhecimento.)

Essas diferenças levariam os príncipes lídios, agora da mesma família dos Senhores de Tharsis, a aceitar sem maiores investigações o significado esotérico do Culto à Deusa do Fogo Frio, que doravante seria chamado de “Pyrena” por consenso comum, e a dedicar todos os seus esforços ao aperfeiçoamento da forma exotérica do Culto.

Tal aplicação é sempre prejudicial ao aspecto esotérico e, como não poderia deixar de ser, acabaria sendo fatal para os tartessianos.

Os lídios, assim como em outras indústrias, eram artesãos habilidosos em pedra.

Eles decidiram, para horror de seus parentes ibéricos, que nada podiam fazer para impedir, esculpir a figura de Pyrena na torre do Bosque Sagrado. A escultura ajudaria a sustentar o culto, explicaram, pois o povo lídio precisava de uma imagem mais concreta da Deusa: sua representação como Chama era abstrata demais para eles.

Dois mestres escultores trabalharam na escultura, um para esculpir o Rosto e outro os cachos serpentinos, enquanto três assistentes trabalhavam na cavidade na nuca, conectada aos Olhos da Deusa.

O trabalho só foi concluído cinco anos depois. Embora as ferramentas de ferro dos lídios lhes tenham permitido um progresso significativo desde o início, o acabamento polido que buscavam exigiu muitos anos de trabalho. De fato, os tartessianos continuariam polindo a Cabeça de Pyrena por décadas, conferindo-lhe um realismo impressionante.

Além dos tartessianos, orgulhosos portadores da Promessa da Deusa, homens de mil povos diferentes peregrinavam à “Floresta Sagrada de Tartéssida” para participar do Ritual do Fogo Frio: entre outros, os ibéricos e lígures vinham de todos os cantos da península, os brilhantes pelasgos da Etrúria, os robustos berberes da Líbia, os silenciosos espartanos da Lacônia e os pictos tatuados de Albion, etc.

E todos os que chegavam aos Pireneus vinham preparados para morrer.

Morrer, sim, porque essa era a condição da Promessa, a exigência de Sua Graça: como todos os seus adoradores sabiam, a Deusa tinha o Poder de transformar o homem em um Deus, de elevá-lo ao Céu dos Deuses; mas, como todos também sabiam, os raros Escolhidos que Ela aceitava tinham que primeiro passar pela Prova do Fogo Frio, isto é, a experiência de Seu Olhar Mortal; e essa experiência geralmente terminava com a morte física do Escolhido.

De acordo com o que Seus seguidores sabiam, e sem que tal certeza afetasse minimamente seu fascínio por Ela, muito mais Escolhidos haviam morrido do que renascido; aqueles que receberam Seu Olhar Mortal certamente caíram; e muitos, a maioria, jamais se levantaram; mas alguns o fizeram: e essa remota possibilidade foi mais do que suficiente para que os adoradores da Deusa decidissem arriscar tudo.

Aqueles que despertariam da Morte seriam aqueles que verdadeiramente entregaram seus corações ao Fogo Frio da Deusa, e aqueles a quem Ela recompensaria tomando-os como Maridos: por Sua Graça, ao reviver, o Escolhido não seria mais um ser humano de carne e osso, mas um Homem Imortal de Pedra, um Filho da Morte.

Esses títulos inicialmente representavam um enigma para os Lordes de Tharsis, que foram os que introduziram a Reforma do Fogo Frio no Antigo Culto de Belisana.

Durante o período em que o Ritual do Fogo Frio não era celebrado, os Hierofantes Tartessianos permitiam que os peregrinos chegassem à clareira da Floresta Sagrada e contemplassem a colossal efígie de Pyrena; ali, podiam depositar suas oferendas e refletir se estavam dispostos a enfrentar a Morte da Prova do Fogo Frio ou se preferiam retornar à realidade ilusória de suas vidas cotidianas.

Por enquanto, a Deusa não podia machucá-los, pois Seus Olhos estavam fechados e Ela não comunicava Seu Sinal de Morte a ninguém.

Mas, apesar dessa convicção, muitos permaneceram paralisados de terror diante da Antiga Face Revelada, e não menos pessoas fugiram imediatamente ou morreram ali mesmo de terror.

Quem conseguiu se recuperar do choque inicial e percebeu os detalhes da Face incomum teve que reunir todas as suas forças para evitar ser tomado, mais cedo ou mais tarde, pelo pânico.

O que tinham diante de si não era uma mera representação inerte em pedra, mas a Imagem Viva da Deusa: Pyrena se manifestava na Face, e a Face participava Dela.

E era esse Rosto hierático que tirava o fôlego.

Provavelmente, se alguém tivesse conseguido, por meio de um poderoso ato de abstração, separar o Rosto da Cabeça da Deusa, teria descoberto que ela possuía belas feições. Primeiro, e apesar da cor esverdeada da pedra, o formato das feições indubitavelmente indicava que ela pertencia à Raça Branca. Em seguida, era possível reconhecer na aparência geral uma beleza arquetípica indo-germânica ou diretamente ariana: rosto oval retangular; testa larga; sobrancelhas espessas, ligeiramente curvadas e horizontais; as pálpebras, já que os olhos permaneciam fechados, demonstravam por sua expressão um olhar frontal, com olhos redondos e perfeitos; nariz reto e proporcional; queixo firme e proeminente; pescoço forte e esbelto; e a boca, com o lábio inferior mais grosso e um pouco mais saliente que o superior, era talvez a nota mais bela: estava ligeiramente aberta e curvada num sorriso mal esboçado, num gesto inconfundível de ironia cósmica.

Naturalmente, quem não tivesse os necessários poderes de abstração não notaria nenhuma das características mencionadas.

Ao contrário, toda a atenção deles seria, sem dúvida, imediatamente absorvida pelo Cabelo da Deusa; e essa observação inicial certamente neutralizaria o julgamento estético anterior: ao contemplar a Cabeça como um todo, Cabelo e Rosto, a Deusa apresentava aquela aparência aterrorizante que causava pânico nos visitantes.

Mas o que havia em Seu Cabelo que pudesse paralisar de terror os rudes peregrinos, normalmente acostumados ao perigo?

Serpentes; Serpentes de realismo excepcional.

Seu Cabelo era composto por dezoito Serpentes de pedra: oito, de comprimentos variados, caíam de cada lado de Seu Rosto, e duas outras, muito menores, eriçadas sobre Sua testa.

Cada par das oito Serpentes estava na mesma altura: duas na altura de Seus Olhos, duas na altura de Seu Nariz, duas na altura de Sua Boca e duas na altura de Seu Queixo; emergindo de uma camada anterior de cabelo, as oito serpentes restantes retornaram e colocaram suas cabeças entre as anteriores.

E cada serpente, separando-se dos cachos restantes, formava duas curvas opostas no ar com seu corpo, como um S, o que lhe permitia anunciar o próximo movimento: o ataque mortal. E as duas serpentes na testa, apesar de menores, também exibiam a mesma atitude agressiva.

Em suma, ao admirar o rosto da deusa sorridente de frente, o arco das dezoito cabeças de serpente emergia poderosamente de seus cabelos; e todas as cabeças estavam voltadas para a frente, acompanhando com os olhos o olhar sem olhos da deusa; e todas as cabeças tinham suas mandíbulas horrivelmente abertas, expondo suas presas mortais e gargantas abismais.

Não deveria ser surpresa, então, que essa aparência impressionante da deusa aterrorizasse seus adoradores mais fiéis.

As dezoito serpentes representavam as letras do alfabeto tartessiano, as dezoito Vrunas de Navutan, com as quais se podia compreender o Signo da Origem, e com este, a Serpente, o símbolo máximo do conhecimento humano.

As duas Serpentes menores, por exemplo, correspondiam às duas letras introduzidas pelos lídios, e sua pronúncia era mantida em segredo, assim como o Nome da Deusa da Lua, formado pelas três vogais dos ibéricos.

Neste caso, as duas vogais permitiam conhecer o Nome que a Deusa Pireneu deu a si mesma quando se manifestou como Fogo Frio no coração do homem, ou seja, “Eu Sou” (algo como Eu ou Ei).

Todos os anos, à medida que o solstício de inverno se aproximava, os Hierofantes determinavam a lua cheia mais próxima e, naquela noite, o Ritual do Fogo Frio era celebrado em Tartessos.

Não havia muitos Escolhidos que ousassem desafiar o teste do Fogo Frio: quase sempre um grupo que podia ser contado nos dedos de uma mão.

A lua estava alinhada a oeste da Macieira de Tharsis, de modo que a Deusa da Lua invariavelmente aparecia atrás da árvore e viajava pelo céu até atingir o zênite, o local de onde iluminava completamente o rosto da Deusa que Olha para o Oeste.

Desde o anoitecer, com os olhares voltados para o leste, os Escolhidos sentavam-se na clareira, contemplando o Rosto da Deusa e, além, a Macieira de Tharsis.

Quando o Rosto Mais Brilhante da Deusa da Lua repousava sobre o Bosque Sagrado, os Escolhidos permaneciam em silêncio, com as pernas cruzadas e as mãos expressando o Mudra do Fogo Frio. Nesses momentos, eles só podiam mastigar folhas de salgueiro; caso contrário, eram obrigados a permanecer estritamente imóveis.

Até o zênite da lua cheia, a tensão dramática crescia a cada momento, atingindo tal intensidade que parecia que o terror do Escolhido se espalhava pelos arredores e se tornava respirável: o terror não apenas estava no ar, mas também era sentido epidérmicamente, como se uma Presença aterrorizante tivesse surgido dos raios de luar e oprimido a todos com um abraço gélido e avassalador.

No início da Prova do Fogo Frio, um Hierofante, com voz estrondosa, recita a fórmula ritual:

Ó Pyrena,

Deusa da Morte Sorridente

Tu que tens a Morada

Além das Estrelas

Vem à Terra dos Escolhidos

Que Clamam por Ti!

Ó Pyrena,

Tu que um dia Amaste os Escolhidos com o Calor do

Fogo e depois os Mataste

Lembra-te da Promessa!

Mata-os primeiro com o Frio do Fogo,

E depois Ama-os em Tua Morada!

Ó Pyrena,

Faz a Vida Quente Morrer em Nós!

Faz-nos conhecer Kalibur,

a Morte Fria do Teu Olhar!

E Faz-nos Viver na Morte a

Tua Vida Congelada!

Ó Pyrena,

Tu que um dia Nos Concedeste

a Semente do Cereal

para Semearmos no Sulco da Infâmia,

Mata aquela Vida Criativa!

E coloca no Coração do Escolhido

a Semente Gelada da Pedra Falante!

Ó Pyrena,

Deusa Branca,

Mostra-nos a Verdade Nua

através de Kâlibur em Teu Olhar,

e não seremos mais Homens, mas Deuses

com Corações de Pedra Congelada!

Kâlibur, Teus Escolhidos Clamam por Ti!

Kâlibur, Teus Escolhidos Te Amam!

Kâlibur, Morte que Liberta!

Kâlibur, Semente de Pedra Congelada!

Kâlibur, Verdade Nua Lembrada!

SOBRE O TRADUTOR

Ícaro Aron Soares, é colaborador fixo do PanDaemonAeon e administrador da Conhecimentos Proibidos e da Magia Sinistra. Siga ele no Instagram em @icaroaronsoares@conhecimentosproibidos e @magiasinistra.

ORIGINAL

Belisana, Los Elegidos y La Efigie de Pyrena

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