Xamanismo Tântrico dos Himalaias

Ganesh

XAMANISMO TÂNTRICO DOS HIMALAIAS
Por AShTarot Cognatus

O xamanismo é um fenômeno universal, sendo possível observar em diversas partes do mundo determinados elementos ritualísticos, bem como uma cosmologia semelhante em alguns aspectos. O termo xamanismo origina-se de tungue saman, que por sua vez teria se originado do termo em sânscrito sramana. A partir daí, é possível observar a influência da antiga cultura tântrica na origem da terminologia do xamanismo, posteriormente se espalhando amplamente pela Ásia através do budismo. Segundo Mircea Eliade em sua obra de referência a todos os estudos acadêmicos do xamanismo, “Xamanismo: Técnicas Arcaicas do Êxtase”, ele define o xamã como sendo aquele que opera as diversas técnicas do êxtase, como a ascensão aos planos divinos, o uso do canto, da dança, de plantas psicoativas, meditação, intercâmbio com espíritos, entre outros, com a finalidade de curar os casos considerados incuráveis através de outros métodos convencionais. Nessa sua obra magistral, ele mostra como diversos elementos são utilizados com mais ênfase em determinadas culturas ao redor do mundo. Ele também escreve que o xamanismo está ligado a dois planos, ao do êxtase em si no qual os xamãs obtêm o conhecimento necessário através de suas interações com o plano espiritual, e também ao plano do contexto histórico-cultural no qual o xamã está inserido, pois ele se apropria de elementos culturais para curar o paciente, esse também inserido em um determinado papel cultural. Essa cura deixa de ser apenas individual, transformando-se também em uma cura social, uma vez que esse indivíduo poderá ser reajustado à sua função na comunidade.

Eliade discorre sobre a ampla influência que o budismo teve na Ásia, e devido a isso muitas das formas de xamanismo asiático possuem influências budistas, tal como podemos ver no Bon tibetano, um sistema animista e xamânico onde houve uma aculturação por parte do Vajrayana, conhecido popularmente como budismo tibetano. O budismo Vajrayana veio da Índia para o Tibet com Padmashambhava, que teria doutrinado os espíritos do Bon ao Vajrayana. Dessa forma, esse histórico-cultural complexo está ligado às raízes indianas que acabaram se espalhando pela Ásia conforme diversos divulgadores do budismo deixavam a Índia para espalhar esse conhecimento em outros países próximos (Padmasambhava-Tibet, Bodhidharma-China, etc).
Porém, antes do surgimento do budismo, a sociedade indiana era guiada pela cultura védica com base em escrituras como os Vedas, Upanishads, Puranas, entre outras. Paralelamente a elas, há todo um corpo de conhecimento tântrico, sendo tantra o nome dado a uma metodologia específica dentro de um corpo doutrinário. Dessa forma, há diversas escrituras tântricas que ensinam métodos ritualísticos completos, englobando desde adoração à deidades a cerimônias de fogo, recitações de mantras, formas de visualização e meditação.

No meio desse cenário, surge o Xamanismo Tântrico da região dos Himalaias, uma cordilheira de montanhas que liga a Índia, Nepal e China. Nesse local vivem diversos povos, como os newari, tamang, sherpa, gurung e outros. Esses povos seguem diversos aspectos desse complexo histórico-cultural mencionado anteriormente, sendo que alguns estão mais voltados ao budismo, outros ao que ficou convencionado a ser chamado de hinduísmo (a cultura védica), aspectos tântricos e outros aspectos mais nativos, como os ligados ao Bon. Muitos seguem um sincretismo entre es- ses diversos aspectos culturais. Os xamãs apropriam-se desses diversos aspectos para o seu arsenal de técnicas de poder.

Divindades tântricas

Mesmo com o grande número de deidades veneradas nos Himalaias, Ganesha geralmente é cultuado primeiramente, pois ele é considerado o guardião dos locais sagrados, e é tido também como o primeiro xamã, pois passou pela experiência de morte ao ter a sua cabeça cortada, e também de renascimento ao tê-la substituída por uma cabeça de elefante. Ganesha também é o regente do muladhara chakra (chakra da base ou raiz), ou seja, é o primeiro a ser venerado no caminho do despertar da força vital conhecida como Kundalini. Ganesha é filho de Parvarti (a filha da personificação dos Himalaias) e do Senhor Shiva. Parvati é a personificação de Shakti, a energia de Shiva, o aspecto de Consciência Divina. A Kundalini é um aspecto de shakti no corpo sutil (sukshma sarira), que após ser desperta precisa ir ao encontro do seu amado Shiva nos chakras superiores. Esse despertar corresponde a peregrinação que os xamãs realizam na montanha Kalinchok a fim de despertarem sua potencialidade (shakti) enquanto xamãs.

Outras divindades tântricas veneradas pelos xamãs são os Yidams do Vajrayana, as divindades do budismo tibetano que são representadas em thangkas, quadros em tecidos utilizados para representar diferentes aspectos dessas divindades. Algumas divindades, tais como as de Shiva (Mahakala), também foram apropriadas do hinduísmo/tantrismo, porém o budismo adaptou os seus mitos e funções. Especialmente no Nepal, a imagem de Bhairav, uma forma de Shiva em seu aspecto irado, é bastante venerada. Bhairav ainda é classificado com um nome específico em cada uma das direções em que ele se apresenta, por exemplo, Mahakala Bhairav (norte), Sankatha Bhairav (oeste) etc. O mesmo se aplica a Kali, o aspecto irado de Parvati.

Técnicas arcaicas de êxtase nos Himalaias

Plantas psicoativas, também conhecidas como plantas de poder ou entéogenos, são utilizadas por xamãs do mundo todo para terem visões do mundo espiritual. No contexto do xamanismo dos Himalaias, isso está relacionado a história em que o Senhor Shiva consome o oceano de veneno, e algumas gotas desse veneno se transformam em plantas venenosas ou psicoativas, como a cannabis, a datura, entre outras. Dessa forma, tais plantas são oferecidas ao Senhor Shiva e posteriormente, consumidas. Os xamãs dos Himalaias possuem um amplo conhecimento dessas plantas psicoativas, bem como de cogumelos psicoativos, e as sinergias dessas combinações aplicadas em diversos veículos, tais como o fumo, bebidas, incensos etc., atendem a diversos propósitos.
Outra técnica arcaica utilizada pelos xamãs dos Himalaias e do mundo todo são os cantos sagrados. Nos Himalaias eles tomam a forma de mantras, palavras de poder que uma vez recitadas alteram a estrutura vibracional dos mundos pelos quais os xamãs viajam e interagem. A perspectiva de como o som altera as estruturas é um tema estudado por diver- sos cientistas, e também é tema de experimentação dos xamãs há milênios. Os mantras são de suma importância, pois através deles os xamãs aprendem a entrar em transe, viajar pelos mundos, invocar divindades/espíritos, curar, amaldiçoar entre outros.
Um instrumento sagrado muito importante utilizado para acompanhar os cantos é o tambor. Existem diversos tambores com atribuições diferentes, como o damaru, atribuído e utilizado pelo Senhor Shiva. Eles são utilizados para facilitar o transe e são considerados pelos xamãs como sendo “aeroplanos” que acessam diversos mundos através dos diferentes ritmos associados a esses
planos.
Por fim, há a adaga ritual conhecida como Phurba, que representa o Axis Mundi, ou o eixo do universo xamânico no qual tudo gira ao redor. Nela residem os três planos (superior, intermediário e superior), as quatro direções e dela ema- na todos os mantras. É utilizada de forma cirúrgica para remover qualquer perturbação que represente um obstáculo a cura a ser realizada. O xamã é a Phurba, e por estar no centro do universo, ele torna-se capaz de atuar de forma mágica na reorganização do universo, realizando assim as mudanças que julgar necessárias.

Publicado originalmente em REVISTA ANTESTÉRIA – ANO I – MAIO/JUNHO MMXVII – Nº II

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