A Alma Monstruosa

Fora dos Círculos do Tempo

Por Kenneth Grant, Outside the Circles of Time, Capítulo 1. Tradução de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares@conhecimentosproibidos e @magiasinistra.

De tempos em tempos, nas obras de poetas, pintores, místicos e ocultistas, aparecem certos elementos fugidios que podem ser considerados genuínas manifestações mágicas, demonstrando o poder e a habilidade do artista em evocar elementos de um universo estranho e extradimensional, que só pode ser compreendido pelas antenas mais sensíveis, afinadas e delicadas da consciência humana. Quando a visão aparece, ela é percebida por aquele órgão oculto e imaterial popularmente conhecido como “terceiro olho”, sobre o qual um iogue contemporâneo disse: “Se sua atenção estiver no terceiro olho, a imaginação será suficiente para criar qualquer fenômeno” (1).

A preparação que torna o instrumento humano sensível ao impacto sutil de forças extracósmicas não é exatamente a mesma realizada pelos iogues com o propósito de experimentar a supraconsciência. Ao contrário, a primeira exige aquela reviravolta total e sistemática dos sentidos que Rimbaud descreveu como a chave para o autoconhecimento quando disse: “…O estudo primário do homem que deseja ser poeta é seu próprio conhecimento total. Ele busca sua alma, examina-a, sonda-a, instrui-a. Assim que a conhece, sua obrigação é cultivá-la. A alma pode se tornar monstruosa… Ele deve ser um viajante dentro de si mesmo. …O poeta se torna um vidente por uma tremenda e raciocinada reviravolta de seus sentidos. Em todas as formas de amor, sofrimento e loucura, ele busca a si mesmo; consome todos os venenos dentro de si, para reter apenas as quintessências… Assim, ele alcança o desconhecido, e quando, à beira da loucura, finalmente perde a compreensão de suas visões, ele já as contemplou.” (2)

Essa fórmula de desordem era para Rimbaud, como para alguns dos maiores mágicos e artistas, a chave suprema para a inspiração e a recepção de imagens vívidas, como os vislumbres iluminados e trêmulos nas telas de um Dalí ou de um Ernst. Esta é a chave da inspiração que Remy de Gourmant reconheceu como fonte de Les Chants de Maldoror, sobre a qual disse: “Permanecerá única e pertence doravante ao rol das obras que… formam a biblioteca abreviada cuja leitura só será possível para aqueles espíritos doentios que não se prestam às alegrias quotidianas nos lugares habituais, ou para aqueles a quem falta a moral convencional. (3)

Deve ser evidente que aqueles que penetram nas forças das Qlifot devem assumir a Máscara da Besta. Não é surpreendente, portanto, descobrir que toda a gama de desejos chamados anormais e pervertidos foi explorada numa tentativa de transmitir as vibrações de forças extracósmicas, ou pelo menos extraterrestres.

Tais forças foram descritas pelos antigos como demônios, gigantes, elementais, anões, etc., e foram subdivididas em formas monstruosas e bestiais pelas mitologias de todos os povos. O mágico Michael Bertiaux descreve a transferência de forças do Universo “B” para o nosso próprio Universo “A”, e seu retorno, com as seguintes palavras:

“Dagon retornará, pois deseja feitiçarias poderosas… pois as poderosas feras das profundezas foram libertadas e marcharam em seu caminho de destruição, e o pior pode ser esperado. Apegue-se firmemente aos poderes que lhe dei, pois somente pela transformação em lobisomem, isto é, tornando-se um monstro, o mago poderá escapar” (4).

E também:

“…Ele se tornará um monstro e escapará desse caminho, que é apenas a porta para o limiar daatiano da escuridão total. Eu lhe disse que todas as rotas de fuga estão bloqueadas, mas, na realidade, a única saída é se transformar em um monstro, tornando-se a besta. Dessa forma, você poderá escapar pela mesma porta por onde eles entram. Além disso, assuma que essa porta está sempre aberta e que a entrada pelo outro lado é uma ameaça constante… Eles estão despertando lentamente, e é por isso que as portas foram criadas; você deve vestir as máscaras e peles de animais, outros monstros horríveis e entidades astrais infernais. Somente por esse meio o mago pode escapar deste universo para o próximo sistema de mundos. Estamos buscando lançar as bases de uma certa magia específica para este assunto, então só podemos alertar, porque a própria boca do inferno está se abrindo, e os demônios e daemons do décimo primeiro caminho estão se espalhando por esta esfera.” (4)

Voltando à “chave” de Rimbaud. Houve poucos casos de perturbação dos sentidos para propósitos especificamente mágicos mais documentados do que os de Aleister Crowley quando ele viajava diariamente para outros mundos e materializava parcialmente sonhos que eclipsavam os eventos mundanos da consciência ordinária (5). A força necessária para vivenciar um sonho e permanecer externamente coerente é algo que poucos podem reivindicar (6). Lautreamont admitiu que não conseguiu e, como é bem sabido, Rimbaud sucumbiu na tentativa.

É, portanto, altamente instrutivo estudar as obras daqueles que, imersos numa loucura brilhante, são capazes de recordar, ainda que trêmulos, a Visão transmitida e exacerbada por repetidas convulsões internas de terror ou por orgasmos de êxtase. Baudelaire declarou: “…é através dos sonhos que o homem se comunica com o sono escuro que o cerca.” Não é compreensível que o sonho como tal seja a chave para outras dimensões ou esferas. Os psicólogos geralmente mostram que os sonhos costumam ser um fenômeno pessoal e insignificante, pois não vão além da consciência individualizada do sonhador. Este certamente não é o sonho ao qual Baudelaire se refere, já que ele é composto de resíduos da atividade diurna. Entretanto, alguns sonhos raros ou inexistentes na vida da maioria dos indivíduos são frequentemente sonhados por adeptos da Arte e do Ocultismo, contendo flashes de fontes diferentes daquelas vistas através da janela estreita do sonhador comum. A capacidade de aumentar a duração desses relâmpagos distingue o artista genuíno e o ocultista habilidoso na arte do controle mágico dos sonhos. Porque o principal segredo do delírio criativo está baseado em um tipo especial de controle que pode ser aplicado conscientemente. Aí reside a dificuldade em compreender, apenas em termos irracionais, a alteração sistemática dos sentidos que é privilégio do gênio criativo.

A compreensão do sonho em seu sentido essencial e intuitivo leva diretamente à compreensão da magia, porque toda criatividade envolve mudança, transformação, tradução. Aleister Crowley definiu magia como a “arte de causar mudanças de acordo com a vontade” (7). Ele também definiu magia como “energia tendendo à mudança” (8). Mas qual é a natureza dessa energia e a mudança para a qual ela tende? No plano físico, a energia é criativa como energia sexual e a natureza da mudança está de acordo com a natureza do desejo, ou controle que é exercido no momento de sua liberação (orgasmo). Assim, a fórmula completa da magia, como a do controle dos sonhos, é resumida no preceito de onze palavras: Faze o que tu queres, há de ser tudo da lei (9). Isso pode ser interpretado como significando a lei básica, a tendência inerente de cada indivíduo em direção à transformação total de si mesmo, da entidade limitada que ele acredita ser, para o que ele realmente é em essência; isto é, uma ausência transcósmica, extraterrestre e, em última análise, extradimensional. Para entender isso profundamente, é preciso também entender que o Ser persiste independentemente da existência e da não existência. Blavatsky fez a seguinte observação (10): “A ideia de que as coisas podem deixar de existir e ainda assim SER é fundamental na psicologia oriental. Por trás dessa aparente contradição de termos, reside um fato importante da natureza, que deve ser compreendido com a mente, em vez de argumentado em palavras.” Num sentido mais limitado e imediatamente aplicável, pode-se apreender esta ideia pela compreensão do preceito de onze palavras e do seu complemento: Amor é a lei, amor sob vontade (11).

O amor é identificado aqui com o método de efetuar tradução e transformação mágicas, porque o amor, no sentido em que esta palavra é usada em AL, tem uma conotação essencialmente bioquímica e sexual. O livro O Lado Noturno do Éden (12) contém um esboço das fórmulas mágicas e das formas de feitiçaria sexual que elas envolvem. É relativamente verdade que o próprio Crowley não reconheceu totalmente essas implicações. Isso pode ser explicado pelo fato de que até o ano de sua morte (1947) não ocorreu contato em massa entre a Terra e inteligências extraterrestres, contato que sua comunicação com Aiwass (13) ajudou a tornar possível. (14)

Os escritos do ocultista francês Abade Boullan, cujos ensinamentos incluíam alcançar a salvação por meio de relações sexuais com anjos e outras entidades extraterrestres, tornam-se compreensíveis à luz do relacionamento de Crowley com Aiwass e da pesquisa mais recente de Michael Bertiaux nessa área. Aspectos adicionais do mesmo tema aparecem nas obras de Swedenborg, (15) J. K. Huysmans, Arthur Machen e H.P. Lovecraft. Michael Bertiaux afirma ter contatado a entidade astral que usou Boullan como médium no século passado. Este método de congresso, embora permaneça inexplicável, foi comprovado pelo trabalho de Austin O. Spare, cuja feitiçaria de “símbolos sensíveis” foi verificada por ocultistas contemporâneos, inclusive eu. O trabalho de Spare me ajudou a desenvolver a fórmula de Controle do Sono descrita na Trilogia Tifoniana (16). Pesquisas recentes sugerem que o controle dos sonhos pode ser uma designação alternativa para o controle do méon, isto é, o controle do Universo “B”, representado na mitologia egípcia antiga como Amenta, e na psicologia moderna como o subconsciente controlado magicamente.

A assunção de formas monstruosas (17) e o sentimento de identidade com “entidades astrais infernais” tornam-se lógicos como um método de controle de níveis subctônicos, e Austin Osman Spare desenvolveu técnicas sigilográficas válidas para explorar níveis subliminares. (18) Bertiaux também contribui com um estudo único e aprofundado de tais atavismos primordiais em seus sistemas altamente sofisticados, dos quais Le Misteré Lycantropique é apenas um. Aqui, estamos nos referindo à representação psicográfica e astrográfica das forças (elementares) envolvidas em um sentido bastante genérico.

Entretanto, um certo Grimório secreto (19) contém os padrões básicos ou vibrações primordiais que o ocultista usa para evocar os Teratomas Tifonianos, pois deve ser entendido por analogia com uma materialização reversa ou refletida, que os monstros descritos na história da criação Berosiana, monstros que precederam o surgimento da vida humana, eram Máscaras do Poder Primordial que fluíram para a manifestação, através do Olho do Vazio. (20) O significado do retorno, conforme formulado por Bertiaux no artigo já citado (21), só pode ser realizado por uma reversão do processo, isto é, pela identificação com a Besta cuja natureza mágica é simbolizada por Shugal-Choronzon 666. (22) Arthur Machen, o autor e místico galês, ocasionalmente se referiu a uma teoria de Reversão Protoplasmática (23) que parece ter muito em comum com o sistema de Ressurreição Atávica de Spare. O estágio final dessa transformação ou mudança mágica é descrito por Boullan quando ele declara, talvez deliberadamente, que Dagon retornará. H.P. Lovecraft também aderiu inconscientemente a esse modelo quando formulou o Cthulhu Mythos, elaborado em grande parte, como ele mesmo admite (24), a partir de fontes oníricas.

Dagon, cabalisticamente, é equivalente ao número 777, que excede 666 por 111, sendo este último o número de ALP que significa “morte e escuridão espessa”; 111 é a extensão completa da letra primordial A (Aleph, ALP), representada no Tarô pelo Louco ou o Palhaço. O simbolismo é complexo e deve ser estudado em conexão com uma análise das dez primeiras letras do alfabeto mágico, conforme estabelecido no segundo capítulo de O Lado Noturno do Éden. O Louco é o único guia no décimo primeiro caminho (25), o caminho da magia ou “energia que tende a mudar”. Esta é a chave que nos leva à natureza de todos os expoentes dos antigos ritos ou máscaras, que são representados pelas antigas figuras do Arlequim, do Bobo da Corte, do Palhaço ou do Louco. Uma visão superficial das vidas e atividades de adeptos como Levi, Blavatsky, Crowley, Gurdjieff e mais tarde Salvador Dali, cujos êxtases simbólicos são um enigma para seus admiradores e detratores, revela um elemento de palhaçada combinado com tons bestiais e comuns que se fundem na imagem deslumbrante do sábio inefável e do ignorante abismal, da besta hedionda e do deus belo: “Meus adeptos permanecem eretos, suas cabeças acima dos céus, seus pés abaixo dos infernos” (26).

O Anjo e o Diabo estão refletidos na mesma imagem. Dalí, Tanguy, Ernst e outros capturaram essa imagem visualmente no instante fluido de sua emergência de um caos para outro. É a imagem flutuante do poder irracional que Spare também imaginou se anatomizando em uma visualização de sensações além da experiência normal, como um produto dessa desordem sistemática dos sentidos de que Rimbaud fala. A imagem é atraída para o vórtice da consciência por um rito curioso, um estratagema de tentação, à beira da mania. Esta é a fórmula do Vórtice que tem sido usada pelos iniciados do Caminho da Mão Esquerda desde tempos imemoriais. O Caminho da Mão Esquerda é precisamente o da perturbação ou inversão dos sentidos que Rimbaud formulou independentemente e que os surrealistas posteriores colocaram em prática posteriormente. Não há dúvidas de que algo está acontecendo; Eles podem duvidar que o evento dependa somente da fórmula, mas são incapazes de entender que ele não precisa ser um transtorno e, certamente, não há necessidade de que ele seja percebido externamente. Rimbaud, Baudelaire e outros “viviam a vida” exteriormente, mas considere Huysmans, Mallarmé ou nas artes visuais Delvaux; Eles não pareciam fazer dessa maneira. Huysmans com seu emprego seguro em um escritório, Mallarmé um respeitável professor de inglês, Delvaux estabelecido como diretor de uma academia de arte na Bélgica. A qualidade de seu trabalho nos dá a resposta, e mesmo nos casos em que o artista parecia “viver a vida”, isso não é, por si só, uma prova conclusiva de que exista um “mundo transcendente” ou contato com reinos estranhos. O brilhantismo no trabalho de muitos artistas, mesmo aqueles com reputação internacional, mostra que eles não fizeram a transição da mesma forma que Spare, Sime, Dalí, Tanguy, etc. Esses artistas conseguiram saltar para outras dimensões e, mais importante, retornaram para registrar suas experiências extradimensionais. Este parece ser o cerne da questão: certos artistas entraram em outra dimensão e foram capazes de retornar à consciência mundana e deixar um registro da Visão. Isto era conhecido nos tempos antigos como a “Visão de Pan”.

NOTAS AO CAPÍTULO 1

1.- O Livro dos Segredos-I, de Bhagwan Shree Rajneesh, p. 110. Envolve a faculdade de Visão, que é em si o princípio criativo ou projetivo. Veja também Cinco Hinos a Arunachala de Sri Arunachala Ashtakam, Vrs. 6, por Sri Ramana Maharishi.

2.- G. F. Lees na introdução à sua tradução da página Une Saison en Enfer (Arthur Rimbaud). 9 e 10.

3.- Remy de Gourmont na sua introdução aos Cantos de Maldoror, Sociedade Casanova 1924.

4.- Um documento inédito intitulado “Leitura de Joseph-Antoine Boullan”, de Michael Bertiaux, segundo Bertiaux, foi transmitido astralmente em 28-10-1976. O significado de termos como Dagon, o Portal Daathiano ou o Décimo Primeiro Caminho será explicado mais tarde.

5.- Veja o Registro Mágico da Besta 666, editado e anotado por Symonds e Grant, 1972.

6.- Salvador Dalí: “A única diferença entre um louco e eu é que eu não sou louco.”

7.- Veja Magick (Liber Aba) de Crowley, p. 131.

8.- 777 revisado (Crowley et al.) p. XXV.

9.- AL I-40.

10.- A Doutrina Secreta (Blavatsky), 1, 54.

11.- AL I-57.

12.- Frederick Muller Ltd., 1977.

13.- Uma entidade extraterrestre que comunicou a Crowley o Livro da Lei (1904) e outros escritos.

14.- Os chamados avistamentos de OVNIs foram relatados em grande número em 1947, muito acima dos relatos anteriores.

15.- Veja o interessante artigo de Wilson Van Dusen intitulado ‘Alucinações como o Mundo dos Espíritos’ {Fronteiras da Consciência, ed. John White, Julian Press, 1974).

16.- Veja, particularmente, Aleister Crowley e o Deus Oculto, capítulo 6, e o último capítulo de Cultos das Sombras.

17.- Cf. a assunção de formas divinas praticada pelos membros da Aurora Dourada.

18.- Veja Imagens e Oráculos de Austin Osman Spare (Grant), Frederick Muller Ltd., Londres, 1975.

19.-A Cabala de Besqul será mencionada em outros artigos.

20.- O Lado Noturno do Éden, Parte I, capítulo 6.

21.- Vide, supra, see p. 19.

22. – O Lado Noturno do Éden, capítulo 5.

23.- Veja especificamente O Romance do Selo Negro (Machen) onde a fórmula é explicada.

24.- Veja As Cartas Selecionadas de H. P. Lovecraft (5 vols) ed. Derleth e outros.

25.- Onze, o número da magia, é também o número das Qliphoth; desempenha um papel importante na Cabala de AL, onde Nuit afirma que este é o seu número. Veja AL I-60.

26.- Liber Tzaddi vel Hamus Hermeticus (Crowley). Ele aparece no Equinócio, vol. I. No. 6.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *