
Aleister Crowley, a Grande Besta.
A Índia e o Ocultismo: A Influência da Espiritualidade do Sul da Ásia no Ocultismo Ocidental Moderno
Por Gordan Djurdjevic, India and the Occult: The Influence of South Asian Spirituality on Modern Western Occultism. Tradução de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares.
A GRANDE BESTA COMO HERÓI TÂNTRICO: O PAPEL DA IOGA E DO TANTRA NA MAGIA DE ALEISTER CROWLEY
No verão de 1900, Aleister Crowley (1875-1947) encontrou-se no México em busca de suas duas grandes paixões: montanhismo e magia.¹ Embora tivesse apenas 24 anos, Crowley já era um dos mais altos iniciados da Ordem Hermética da Aurora Dourada, a mais importante fraternidade ocultista fin de siècle do Ocidente. Ele se considerava um adepto da magia, mas a futilidade de seus esforços e uma sensação de insatisfação começavam a se afirmar com força crescente. Quando um colega montanhista, Oscar Eckenstein (1859-1921), juntou-se a ele no México no final do ano, Crowley confidenciou suas preocupações ao amigo. Eckenstein, engenheiro ferroviário e químico analítico de profissão, aparentemente sem interesse pelo ocultismo, deu uma resposta que abordava o cerne da questão: os problemas de Crowley decorriam de sua incapacidade de concentração. “Abandone sua Magia, com todos os seus fascínios românticos e deleites enganosos”, aconselhou-o Eckenstein. “Prometa fazer isso por um tempo e eu lhe ensinarei como dominar sua mente” (Crowley, 1969: 213-214).
Crowley concordou com a proposta e, em pouco tempo, mergulhou em uma série de exercícios idealizados por Eckenstein, cujo objetivo era permitir que seus pensamentos permanecessem focados em uma imagem mental escolhida ou em uma entrada sensorial. Esses exercícios foram, em sua essência, os passos iniciais no caminho do Yoga, empreendidos por alguém que mais tarde se tornaria um dos principais defensores dos ensinamentos iogues e, em menor grau, tântricos no campo do ocultismo. A influência de Crowley no esoterismo do século XX e contemporâneo foi enorme,2 mas seu estilo de vida e ensinamentos incomuns continuam a ser controversos e incompreendidos. Este ensaio se concentrará no lugar do Yoga e do Tantra nos escritos de Crowley, dentro da estrutura das Ordens mágicas das quais ele era o líder e em sua própria prática espiritual. Meu argumento é direto: Crowley não apenas é importante para a fusão das tradições esotéricas orientais e ocidentais,3 mas sua própria prática de magia se torna mais clara se aspectos dela forem compreendidos à luz do Yoga e do Tantra.
ÍNDIA, ESOTERISMO OCIDENTAL E CROWLEY
A tendência ao sincretismo é uma das características definidoras do esoterismo ocidental. No final do século XIX, essa tendência se manifestava fortemente como uma abertura às tradições religiosas orientais, principalmente indianas. Essas tradições estavam se tornando cada vez mais conhecidas por meio de inúmeras traduções de textos originais e de relatos populares escritos por viajantes coloniais. Um evento marcante nesse sentido, no que diz respeito ao esoterismo ocidental, foi a formação da Sociedade Teosófica em 1875.4 Esse mesmo ano também deu origem ao que se pode considerar o ocultista mais importante e influente do século XX, Edward Alexander — mais conhecido como Aleister Crowley. Em seus volumosos escritos e em sua própria prática e ensinamentos espirituais, Crowley se envolveu e incorporou elementos do Yoga e do Tantra indianos em grau significativo. Pode-se afirmar com segurança que o Yoga, por um lado, e a tradição esotérica ocidental em geral (incluindo magia, alquimia, astrologia e Cabala), por outro, formam os aspectos gêmeos do que Crowley chamou de magia.5 Além disso, ele frequentemente afirmava que as tradições esotéricas oriental e ocidental compartilham uma semelhança fundamental, que ele tentava elucidar e que regularmente enfatizava.
Um esclarecimento é apropriado desde o início. Embora o envolvimento de Crowley com o Yoga Indiano seja um assunto direto que pode ser facilmente documentado com base em seus escritos teóricos, instruções práticas e registros pessoais de prática,6 seu envolvimento com o Tantra é muito mais complexo e controverso. Em grande medida, esse envolvimento compartilha paralelos principalmente funcionais com o caminho tântrico. É possível reconhecer em todo o projeto da magia de Crowley uma analogia com a abordagem do tantra, mesmo que seu conhecimento formal deste último fosse limitado. A seguir, ancorarei meus argumentos focando em três áreas de convergência entre os métodos de Crowley e os tântricos: o emprego do sexo (por exemplo, ingestão de fluidos sexuais) como ferramenta de realização; o aproveitamento dos aspectos ocultos do corpo humano (sutil) (representados pelos chakras e pela kundalinī); e o uso da transgressão como técnica espiritual.
ESBOÇO DA BIOGRAFIA INICIAL DE CROWLEY: MAGIA, IOGA, THELEMA E AS ORDENS ESOTÉRICAS
A carreira espiritual de Aleister Crowley começou com sua iniciação na Ordem Hermética da Aurora Dourada, à qual se juntou em 1898.7 Ele ascendeu rapidamente na hierarquia da ordem, tendo um tutor soberbo na pessoa de Allan Bennett (1872–1923). Bennett, com o tempo, deixaria a Inglaterra para se juntar à San˙gha budista na Birmânia (hoje Mianmar), como um dos primeiros ocidentais a receber a ordenação na tradição Theravāda.8 Em 1901, Crowley se juntou a Bennett por vários meses no Ceilão (hoje Sri Lanka). Eles estudaram meditação iogue juntos, aproveitando o conhecimento que Bennett adquiriu do Hon. P. Ramanathan, o Procurador-Geral do Ceilão, que também era um guru Śaivite tâmil e autor de um livro que interpretava os evangelhos de Mateus e João do ponto de vista do Yoga.9 Após sua exposição inicial ao exercício do cultivo mental sob a tutela de Eckenstein, esta foi a primeira tentativa de Crowley na prática formal do Yoga. Ele afirmou que, como resultado dessas práticas, atingiu com sucesso um estágio profundo de meditação iogue, dhyāna, em 2 de outubro do mesmo ano.10
Além de seu envolvimento com as práticas iogues propriamente ditas, Crowley também aprendeu, nesse período, os fundamentos da meditação budista.11 Ele descreveu uma forma budista clássica de meditação, mahāsatipatatahāna, em seu ensaio “Ciência e Budismo”, escrito na Índia em 1901.12 Ele também incorporou a metodologia básica dessa prática em dois de seus manuais de instrução para a Ordem da A∴A∴ (veja abaixo), “Liber Ru vel Spiritus”13 e “Liber Yod”.14 As práticas fundamentais do Yoga clássico, consistindo em postura, exercícios respiratórios e concentração da mente, foram descritas concisamente em “Liber E vel Exercitiorum”, publicado originalmente na “Review of Scientific Illuminism” de Crowley, The Equinox I, 1 (1909a).15 A teoria geral do Yoga é apresentada no texto chamado Misticismo, incorporado à obra-prima de Crowley, o Livro Quatro, ou Magia.16
Na primavera de 1904, ocorreu o evento mais significativo na carreira de Crowley. Segundo seu relato, durante sua lua de mel no Cairo, Egito, ele recebeu um breve texto profético, que ficou conhecido como Liber AL vel Legis, ou O Livro da Lei.17 O livro anuncia a doutrina central de uma nova religião chamada Thelema, com Crowley — referido no livro como “o príncipe-sacerdote, a Besta”18 — como seu profeta.19 Com base nessa revelação e em sua contínua pesquisa e prática de várias tradições místicas e mágicas, Crowley sentiu que era o momento certo para iniciar uma nova Ordem mágica, convencido de que a Aurora Dourada havia perdido seu carisma e autoridade. A nova Ordem, cuja estrutura Crowley desenvolveu em colaboração com seu amigo e mentor, George Cecil Jones, por volta de 1907, é oficialmente conhecida apenas por suas iniciais, A∴A∴. Assim como a Aurora Dourada, a Ordem é modelada no padrão da Árvore da Vida, em que cada sefira na Árvore corresponde a uma realização mística ou mágica específica.20
Em sua essência, o método da A∴A∴ baseia-se na fusão da magia cerimonial ocidental e do Yoga. Um dos graus introdutórios da Ordem, o grau de Zelator, envolve o domínio da postura, ou āsana, e o controle da respiração, prānāyāma. No grau de Dominus Liminis, espera-se que o praticante domine os métodos de introspecção iogue (ou afastamento dos sentidos de objetos externos), pratyāhāra, e a concentração mental, dhāranā. Um iniciado do grau de Adeptus precisa atingir a maestria em meditação profunda, dhyāna, enquanto o Mestre do Templo — um grau que envolve a aniquilação do ego — precisa alcançar o passo final no Yoga clássico, a absorção gnóstica, ou samādhi. Dessa forma, os métodos e práticas do Yoga indiano estão firmemente implantados em uma Ordem mágica que está simultaneamente enraizada na tradição esotérica ocidental.21 Isso demonstra que Crowley, ao reorganizar a Aurora Dourada, baseou-se no que Antoine Faivre designou como “a prática da concordância”, ou seja, o caminho thelêmico para a perfeição espiritual se baseava na fusão de formas orientais e ocidentais de esoterismo.22
Em 1912, Crowley conheceu Theodor Reuss (1855-1923). Reuss era, na época, o líder de uma ordem maçônica marginal conhecida como Ordo Templi Orientis (OTO). Um importante impulso para o estabelecimento da OTO veio de um rico químico austríaco, Carl Kellner (1851-1905), que supostamente recebeu segredos dos ensinamentos tântricos de três adeptos orientais. Tanto Kellner quanto Reuss escreveram textos sobre os princípios do Yoga e do Tantra. Após seu encontro com Reuss, Crowley recebeu uma alta iniciação e foi nomeado líder da seção britânica da OTO. Ele eventualmente se tornou o líder internacional da Ordem, que reorganizou com o objetivo de infundi-la com os ensinamentos de Thelema. A história e a estrutura da OTO estão além do escopo de nossas preocupações atuais, mas é importante enfatizar que o ensinamento central da Ordem é frequentemente considerado como tendo conexões e paralelos com algumas práticas tântricas. Gerald Yorke, amigo de Crowley, antigo discípulo e grande colecionador de suas obras, explica a essência dos ensinamentos da O.T.O. conforme transmitidos por Reuss:
Ele explicou a Crowley a teoria por trás da escola de Alquimia que utiliza fluidos sexuais e o Elixir da Vida. Ele ampliou a tradição de Bafomet dos Cavaleiros Templários e traçou sua suposta sobrevivência através da Irmandade Hermética da Luz [uma sociedade esotérica do século XIX]. Em seguida, mostrou a conexão com os tântricos que seguem o caminho da mão esquerda [utilizando relações sexuais rituais como meio de união espiritual com a divindade] e os Hathayogins que praticam mudras sexuais [posturas sagradas]. O que, no entanto, era mais pertinente [,] ele ofereceu a Crowley liderança na O.T.O. 27
Consequentemente, além de seus escritos sobre esses assuntos, Crowley foi fundamental na incorporação e elucidação da teoria e da prática do Yoga e do Tantra indianos em duas importantes Ordens esotéricas iniciáticas ocidentais, a A∴A∴ e a OTO. Esse fato é altamente significativo, tendo em mente a importância e a influência de Crowley no ocultismo contemporâneo. O fato de seus seguidores demonstrarem um interesse contínuo pelo esoterismo oriental é uma marca do legado de Crowley.28
Antes de nos aventurarmos na exploração das práticas de Crowley, inspiradas pelos ensinamentos tântricos e iogues, é apropriado dedicar algum espaço às suas interpretações da semelhança entre as tradições esotéricas ocidental e oriental. Dois elementos de suas interpretações se destacam. Por um lado, ele era consistente em sua convicção de que o método da magia requer o treinamento da mente. Nesse sentido, pode-se argumentar que ele estava elucidando a tradição mágica ocidental como se fosse uma espécie de Yoga. Por outro lado, Crowley assimilou o Yoga aos modelos ocidentais, estruturando-o no desenho da Árvore da Vida e traduzindo seus fundamentos em conceitos esotéricos ocidentais. Em ambos os casos, o que permanece constante é sua convicção de que Yoga e magia representam dois aspectos diferentes do mesmo fenômeno.29
IOGA NA TEORIA E NA PRÁTICA E SUA CORRESPONDÊNCIA COM AS TRADIÇÕES ESOTÉRICAS OCIDENTAIS SEGUNDO CROWLEY
Para elaborar as maneiras pelas quais Crowley correlacionou teorias e práticas do Yoga e do Tantra indianos com o esoterismo ocidental, os exemplos a seguir são ilustrativos. Começaremos com a suposta similaridade entre Yoga e magia, conforme proposto nos “Postais para Probacionistas” da A∴A∴. Em seguida, investigaremos uma seção das Oito Lições sobre Ioga, na qual o conceito iogue de niyama (disciplina, ou “poder positivo”, na exposição de Crowley) é correlacionado com a astrologia ocidental e a Árvore da Vida cabalística. Por fim, sugiro que examinemos o ritual da Missa Gnóstica de Crowley, que interpretaremos de acordo com as noções tântricas relacionadas ao despertar da energia sutil no corpo e à consumação dos fluidos sexuais.
Em um breve texto anterior intitulado “Postais para Probacionistas” (1909b), Crowley propôs-se a estabelecer um paralelismo entre os métodos do Yoga Indiano e da magia cerimonial ocidental. Ele definiu cada disciplina como “a arte de unir a mente a uma única ideia”. 30 Assim, Jñāna Yoga e a Sagrada Cabala representam “União pelo Conhecimento”. Rāja Yoga e a Magia Sagrada representam “União pela Vontade”. Bhakti Yoga e os Atos de Adoração exemplificam “União pelo Amor”. Finalmente, o Hatha Yoga e as Provações representam os métodos de “União pela Coragem”. 31 Aqui, novamente, temos uma evidência clara da prática da concordância, que Faivre afirmou ser um componente importante do esoterismo ocidental. 32 Ao longo de sua carreira, Crowley consistentemente argumentou uma profunda similaridade entre as suposições e métodos das tradições esotéricas orientais e ocidentais. 33 Ao fazê-lo, ele postulou a mente humana como a fons et origo dos fenômenos místicos e mágicos 34 e viu seu cultivo como o elemento unificador por trás da multiplicidade de várias tradições locais:
Todos os fenômenos dos quais temos consciência ocorrem em nossas próprias mentes e, portanto, a única coisa que precisamos observar é a mente; que é uma quantidade mais constante em todas as espécies da humanidade do que geralmente se supõe. (Crowley, 1991a: 13-4)
Crowley, portanto, interpreta até mesmo a parafernália mágica tradicional de uma perspectiva mentalista: o templo é contíguo à extensão da consciência, o círculo mágico protege de pensamentos hostis, a varinha simboliza a vontade, a taça é o entendimento e a espada se refere à faculdade analítica.35 Da mesma forma (Crowley, 1972: 104), “Invocar os Espíritos significa analisar a mente; governá-los significa recombinar os elementos dessa mente de acordo com a vontade”. Esta é uma reinterpretação significativa da técnica mágica, que de outra forma é habitualmente associada à ação ritual. Crowley não negligenciou o ritual, mas, ao enfatizar a concentração mental como a chave para o sucesso, estava elucidando um aspecto da magia que tem um denominador comum na prática do Yoga.
Oito Palestras sobre Ioga é uma série de palestras que Crowley proferiu para pequenas plateias nos salões superiores de restaurantes londrinos, tendo iniciado a série em janeiro de 1937.36 A terceira palestra abordou um dos estágios preliminares do Yoga clássico, o conceito de disciplina, ou niyama. Patañjali, autor dos fundamentais Yoga Sūtras, define essa prática como consistindo em “Pureza, contentamento, ascetismo, autoestudo e entrega ao Senhor”.37 Em sua elucidação do conceito, Crowley (1991a: 36) utiliza “uma espécie de Ábaco”, que ele alega ser “muito útil em todos os tipos de pensamento”. Este Ábaco é a Árvore da Vida cabalística. Em termos simples, a Árvore da Vida, como usada no ocultismo ocidental, é uma representação simbólica da totalidade da existência, consistindo em dez círculos, ou sefirot, conectados por 22 caminhos, dispostos em um desenho específico. Cada um desses círculos e caminhos é um ponto focal para um conjunto de correspondências.38 De acordo com uma prática padrão, os planetas do sistema solar, em sua significação astrológica, também recebem suas posições apropriadas na Árvore.
Crowley explica as qualidades dos planetas conforme entendidas pela astrologia ocidental e, no processo, enfatiza a “virtude” ou “o poder positivo” de cada um dos planetas como um aspecto de seu niyama. Assim, Saturno — tradicionalmente correlacionado ao esqueleto humano — representa a base sólida da prática espiritual. Além disso, a melancolia associada a Saturno carrega a virtude do “Transe da Tristeza que determinou a pessoa a empreender a tarefa da emancipação” (1991a: 36). Júpiter é “o elemento vital, criativo e genial do cosmos” (1991a: 38). Marte refere-se à energia e à força associadas ao sistema muscular. Seu niyama é “a virtude que permite enfrentar e vencer as dificuldades físicas da Obra” (1991a: 38). O Sol é harmonia e beleza, o coração do sistema, assim como do ser humano. O niyama de Vênus consiste em êxtase e graciosidade. Mercúrio relaciona-se com os poderes intelectuais.39 Finalmente, o niyama da Lua é “aquela qualidade de aspiração, a pureza positiva que recusa a união com qualquer coisa que não seja o Todo” (1991a: 42).
A originalidade da correlação acima entre os princípios da disciplina iogue e a astrologia ocidental em sua conexão com a Árvore da Vida reside em vários fatores. Além de seu valor manifesto como um exercício de esoterismo comparativo, a correlação serve ao propósito de ilustrar o ponto de que “métodos semelhantes produzindo resultados semelhantes podem ser encontrados em todos os países. Os detalhes variam, mas a estrutura geral é a mesma. Porque todos os corpos, e portanto todas as mentes, têm Formas idênticas” (Crowley, 1991a: 14). Crowley antecipa, assim, a visão cognitiva dos sistemas religiosos, defendida recentemente pelo falecido estudioso romeno Ioan P. Couliano.40 De acordo com essa visão, várias religiões são fundamentalmente sistemas gerados pela mente humana. Nas próprias palavras de Couliano (2000: 7; ênfase no original), “A unidade fundamental da humanidade não reside em uma unidade de visões ou soluções, mas na unidade de operações da mente humana”. Dessa perspectiva, o Yoga é despojado de sua alteridade, de seu exotismo. Em vez disso, ele é mostrado como uma disciplina imbuída nos potenciais e propriedades do corpo e da mente humanos. Esta abordagem antropocêntrica é agradável a Crowley, cuja afirmação consistente é que “Não há deus senão o homem”.41
“Liber XV, Ecclesiæ Gnosticæ Catholicæ Canon Missæ”, ou simplesmente “A Missa Gnóstica”,42 é um importante ritual da OTO que Crowley compôs em 1913 enquanto estava na Rússia. Essa cerimônia hierática é uma das expressões quintessenciais da filosofia religiosa de Crowley e combina influências e ideias do Gnosticismo Ocidental, da Thelema de Crowley e, possivelmente, do Tantra Hindu. Os principais oficiantes da Missa são o Sacerdote e a Sacerdotisa, que são auxiliados pelo Diácono e pelas duas “Crianças”. Esta é uma sinopse do ritual: a Sacerdotisa entra no Templo e “acorda” o Sacerdote “morto” de seu túmulo (um evento simbolizado pelo levantamento da lança do Sacerdote, com uma óbvia referência sexual). Juntos, eles se aproximam do altar-mor na extremidade oposta do Templo, sobre o qual o Sacerdote instala a Sacerdotisa, que então se esconde atrás do véu. O Sacerdote invoca a deusa Nuit, uma divindade importante no panteão Thelêmico, identificada como o “Espaço Infinito e suas Estrelas Infinitas”. 43 A Sacerdotisa responde, tornando-se, neste ponto, uma só com a deusa, cujo discurso do Livro da Lei ela agora cita. Agora, o véu é aberto e a Sacerdotisa é vista segurando a taça com vinho, ou o “Santo Graal”, em sua mão. O chamado “Bolo de Luz”, um equivalente da Eucaristia, é consagrado e colocado na ponta da lança do Sacerdote, após o que a ponta da lança é pressionada contra a taça, permitindo que uma parte do Bolo de Luz mergulhe no vinho em seu interior. O Sacerdote come o restante do Bolo de Luz e bebe o vinho, após o que declara: “Não há parte de mim que não seja dos Deuses”. Isso, na prática, representa a consumação do ritual.
Ao compor este ritual, Crowley foi claramente influenciado pela cerimônia formal da Missa, praticada tanto na Igreja Católica quanto na Igreja Ortodoxa Oriental. No entanto, embora a forma seja ocidental e eclesiástica, o processo subjacente que a Missa retrata em seu modo ritual de encenação tem paralelos em algumas noções tântricas fundamentais. Hugh Urban explica os fundamentos da prática tântrica afirmando que
[o] objetivo da sādhanā [prática] é, portanto, reunir os princípios divinos masculino e feminino, para alcançar a união ideal do sêmen e do sangue menstrual dentro do corpo individual. Através do uso da imaginação meditativa e de rituais físicos, a sādhanā se desenvolve como uma espécie de casamento místico, ou melhor, uma internalização e transformação alquímica do processo comum do casamento. (2001: 145; grifo nosso.)
Tendo em mente que a Missa Gnóstica opera em vários níveis de significado, uma possível interpretação do ritual é a seguinte:
A Sacerdotisa representa a energia feminina divina, ou no vocabulário tântrico, Śakti, enquanto o Sacerdote simboliza sua contraparte divina masculina, ou Śiva, que é frequentemente associada a um falo estilizado (lingam); o Bolo de Luz representa o sêmen (bindu), e o vinho na taça refere-se ao sangue menstrual (rajas) ou aos fluidos sexuais vaginais (yonitattva). A Sacerdotisa inspira e traz de volta à vida o Sacerdote inerte — que está, no início do rito, escondido em seu “túmulo” — de uma maneira que carrega associações com o famoso adágio tântrico, segundo o qual, “Sem sua Śakti, Śiva é apenas um cadáver [śava]”. O Templo onde a Missa Gnóstica acontece é organizado de acordo com a estrutura simbólica da Árvore da Vida. Em tal cenário, o túmulo corresponde à sefira mais baixa, Malkuth, que por sua vez corresponde ao mūlādhāra cakra.44 De acordo com a teoria tântrica, o sêmen, que em seu estado original (e situado no topo da cabeça) possui propriedades ambrosiais, transforma-se em veneno ao atingir as partes inferiores do corpo, especificamente os genitais (ou seja, o mūlādhāra cakra). Para remediar essa situação, o sêmen precisa ser trazido de volta ao topo da cabeça. Esse retorno é representado na Missa Gnóstica pela progressão dos oficiantes do túmulo até o altar-mor. Uma vez que a Sacerdotisa está sentada no trono, ela se torna divina e, como tal, profere o discurso da Deusa Nuit. A imersão do Bolo de Luz, da ponta da lança do sacerdote, no vinho contido na taça segurada pela sacerdotisa, corresponde à mistura do sêmen com o sangue menstrual, um dos procedimentos padrão em rituais sexuais tântricos.45 A consumação dessas substâncias consagradas — o Bolo de Luz e o vinho — é paralela à ingestão dos fluidos sexuais combinados, como ocorre nas cerimônias tântricas. O propósito disso é conferir status divino aos participantes, claramente expresso pela fórmula final da Missa, na qual o sacerdote declara que cada parte dele se tornou una com os Deuses.
MAGIA SEXUAL E TANTRA
A Missa Gnóstica é um ritual público e, como tal, refere-se à realização real de magia sexual de forma velada. Fica claro nos escritos de Crowley que ele associou alguns aspectos da magia sexual a certos elementos do Tantra. Hugh Urban argumenta (2003c: 218-9), com muita veemência e, na minha opinião, não totalmente correto, que “a prática de Crowley é o exemplo mais claro de magia sexual ocidental combinada (e talvez irremediavelmente confundida) com o Tantra indiano”. 46 Os aspectos metodológicos da prática da magia sexual são elaborados em sua maior parte nas instruções oficiais de Crowley para os graus mais elevados da OTO, enquanto as referências à sua realização real dessa forma de magia estão espalhadas por seus diários. 47 Em resumo, na visão de Crowley, o ato sexual é um sacramento e a consumação de fluidos sexuais, uma Eucaristia. A chave para o sucesso no ritual de magia sexual reside na capacidade de concentrar a mente para que ela permaneça focada no objetivo da operação, especialmente durante o orgasmo. “Pois na preparação do Sacramento, e também em sua consumação”, escreve Crowley (1974b: 216), “a mente do Iniciado deve estar absolutamente preocupada com uma chama impetuosa de vontade sobre o objeto determinado de sua operação”. Ele descreve a essência da prática indicando a semelhança entre o êxtase sexual e o meditativo, o que, de outra forma, seria um argumento padrão de uma orientação tântrica: “[A] flor espiritual desse processo é que, no momento da descarga [sexual], ocorre um êxtase físico, um espasmo análogo ao espasmo mental causado pela meditação. E, além disso, no uso sacramental e cerimonial do ato sexual, a consciência divina pode ser alcançada.”48
Embora não esteja completamente claro por quais canais Crowley chegou à técnica da magia sexual — por meio da intuição e de livros, por meio de contatos presenciais com praticantes hindus e muçulmanos de ritos semelhantes e/ou por meio dos ensinamentos da OTO49 — não há dúvida de que métodos semelhantes têm uma longa história de uso em algumas formas de Tantra hindu e budista. A crença na natureza potencialmente divina do sêmen, tão fortemente presente nas teorias de Crowley, é evidenciada no hinduísmo desde os tempos mais remotos. Em seu estudo sobre o ascetismo na Índia védica, Walter O. Kaelber (1989: 40; ênfase adicionada) explora longamente as noções de fertilidade da semente masculina — esotericamente frequentemente associada à chuva — e afirma: “A semente masculina, mesmo sem o benefício da contribuição feminina, é fértil e o sêmen ou semente retido aumenta em potência. É capaz de produzir chuva e fertilizar os campos. No entanto, também é capaz de gerar renascimento espiritual e imortalidade.” (É preciso dizer que tanto o Tantra indiano quanto Crowley demonstram uma tendência a supervalorizar a importância da semente masculina.) Como o sêmen retido traz poder, o celibato é frequentemente incentivado na Índia: não necessariamente porque haja algo inerentemente imoral no ato sexual, mas porque a perda de sêmen era percebida como propícia à doença, ao envelhecimento e, por fim, à morte. A conexão entre Eros e espiritualidade acabaria por receber a maior ênfase em algumas teorias e práticas associadas ao Tantra.50
No sistema dos Nāth Siddhas, uma tradição tântrica do norte da Índia creditada com o desenvolvimento do Hatha Yoga,51 o sêmen, ou bindu, era percebido como o portador da imortalidade. No entanto, ele goteja continuamente de sua origem no topo da cabeça e é queimado pelo fogo digestivo no estômago ou ejaculado durante o ato sexual. Crowley estava familiarizado com importantes tratados iogues compostos sob a perspectiva Nāthista, como o Gheranda Samhitā, o Śiva Samhitā e o Hatha Yoga Pradīpikā,52 portanto, é bem possível que ele tenha adotado ideias sobre o potencial divino do(s) fluido(s) sexual(is) (masculino(s)) dessas fontes. No entanto, existem diferenças: os Nāths são habitualmente celibatários, e seu principal objetivo é alcançar o retorno do sêmen ao topo da cabeça por meio da manipulação de posturas corporais, contrações musculares, exercícios respiratórios e meditação.53 Alternativamente, algumas formas de prática tântrica permitem que o ato sexual ocorra, mas o adepto masculino não deve liberar seu sêmen. Como explica Wendy D. O’Flaherty (1973: 262; grifo nosso), “O movimento ascendente da semente… representa a canalização das forças vitais, e para que o ritual fosse eficaz, era essencial que o iogue contivesse sua semente”. Se, por outro lado, a semente tivesse sido ejaculada, era necessário reabsorvê-la, às vezes por meio da sucção uretral (vajroli mudrā). Na prática de Crowley, no entanto, o sêmen é emitido, misturado aos fluidos sexuais femininos e consumido oralmente.54
O método defendido por Crowley, no entanto, também tem paralelos no Tantra. Em seu erudito estudo do budismo esotérico indiano, por exemplo, Ronald Davidson (2002: 197) descreve uma prática de ritual sexual tântrico da seguinte forma: “A consagração secreta envolvia o discípulo trazendo uma parceira sexual feminina (prajñā/ mudrā/ vidyā) ao mestre, que copulava com ela; a combinação de fluidos ejaculados, denominada ‘pensamento do despertar’ (bodhicitta), era então ingerida pelo discípulo como néctar.” Dois elementos desse relato correspondem à prática de Crowley: a ejaculação propriamente dita da semente e a consumação dos fluidos sexuais misturados. No nível teórico, há uma correspondência na visão das emissões sexuais como ambrosianas. A necessidade de misturar fluidos sexuais também é ocasionalmente notada entre os iogues Nāth. Como explica George Weston Briggs (1998: 333): “Dentro da yonisthāna [vagina], há a união de bindu [sêmen] e rajas [sangue menstrual]. . . . Afirma-se que os adeptos são capazes de [efetuar o retorno do sêmen]… até mesmo aspirar rajas e bindu após o ato sexual. Isso é essencial para a bem-aventurança suprema.” O ato sexual envolvendo a emissão da semente masculina e sua mistura com o sangue menstrual, seguido pela ingestão da mistura resultante, também é observado entre os Kartābhajās55 e os Bauls de Bengala.56 Em seus comentários sobre os elementos transgressivos no Cakrasamvara Tantra budista medieval inicial, que pedem o consumo de alimentos impuros e práticas sexuais irregulares, David Gray (2007: 107) afirma que “[u]m dos propósitos principais deste banquete e atividade sexual, eufemisticamente referido como ‘adoração de herói não dual’, é a coleta e o consumo de fluidos sexuais mistos, sêmen e sangue uterino.” Hugh Urban (2003d: 157; 2010) e David Gordon White (2003a) também sugeriram que a prática envolvendo a ejaculação masculina e a ingestão de fluidos sexuais representa uma tradição tântrica genuína e de fato mais antiga, eventualmente substituída pelo costume de retenção seminal. Esses exemplos reforçam a semelhança entre os métodos de Crowley e os métodos tântricos.
Indiscutivelmente, a lógica por trás da prática da ingestão de fluidos sexuais por motivos mágico-religiosos repousa sobre uma base significativa. No nível mais óbvio, o sêmen e as secreções vaginais formam a base da vida humana. O senso de sua importância é observável em numerosos tabus que cercam os métodos de lidar com essas substâncias em diversas tradições culturais. No Tantra Hindu, o sêmen é habitualmente homologado ao deus Śiva, e o sangue menstrual à sua esposa divina, Śakti. Assim, lemos em um texto iogue Nāth:
Sêmen é Śiva, sangue menstrual é Śakti; sêmen é a Lua, sangue menstrual é o Sol. A posição mais elevada é alcançada apenas pela união deles. Sêmen é associado à Lua, e sangue menstrual é associado ao Sol. A pessoa que sabe que são de igual essência é o conhecedor do Yoga.57
No budismo tântrico, o sêmen é frequentemente associado ao “pensamento do despertar” (bodhicitta). O Buda descreve sua natureza esotérica no Hevajra-Tantra em linguagem forte: “Eu habito na Sukhāvatī [Terra da Felicidade] da vagina da mulher em nome do sêmen.”58 Os Bauls e os Kartābhajās de Bengala também ensinam doutrinas semelhantes.59
Um tema recorrente nas tradições espirituais indianas associa o sêmen ao elixir da imortalidade, amrta,60 ou ao licor divino, o soma. Shashibhushan Dasgupta (1969: 250) chama a atenção para o paralelo entre a prática iogue de beber o néctar e o sacrifício védico do soma, que “rejuvenesce e revigora o corpo e concede ao bebedor, seja deus ou homem, vida eterna no céu ou na terra”. Crowley (1981: 47) também ensinou que “Vindu [isto é, bindu, sêmen] é identificado com Amrita”, que, segundo ele, “possui uma vontade própria, que está mais de acordo com a Vontade Cósmica do que a do homem que é seu guardião e servo”. De forma semelhante, ele descreve o efeito de participar do que chama de Eucaristia — um termo velado para o consumo de fluidos sexuais61 — como consistindo na deificação do praticante:
O Magista se torna pleno de Deus, alimentado por Deus, intoxicado por Deus. Pouco a pouco, seu corpo se purificará pela purificação interna de Deus; Dia após dia, sua estrutura mortal, despojando-se de seus elementos terrenos, tornar-se-á, em verdade, o Templo do Espírito Santo. Dia após dia, a matéria é substituída pelo Espírito, o humano pelo divino; finalmente, a mudança será completa: Deus manifestado em carne será seu nome. (1997: 269)
OS ASPECTOS E PODERES OCULTOS DO CORPO HUMANO: CHAKRAS E A KUNDALINĪ
A teoria e a prática do Yoga e do Tantra postulam a existência e a importância espiritual de aspectos ocultos do corpo humano. Dentro do corpo material grosseiro, existe outro corpo sutil (sūksma śarīra), constituído pelos centros de energia posicionados ao longo do eixo que se estende dos órgãos genitais, passando pela coluna vertebral, até o topo da cabeça. Esses centros sutis são habitualmente chamados de “rodas” (chakras) ou “lótus” (padmas), e seus números são habitualmente quatro no budismo e seis ou sete no tantra hindu. Supõe-se que os cakras estejam latentes ou “adormecidos” no caso de uma pessoa comum. Quando despertos, no entanto, eles trazem poderes ocultos (siddhis) e insights gnósticos. Os ensinamentos tântricos conceituam que a energia espiritual primária reside na base da coluna vertebral, na forma da “serpente enrolada” kundalinī.62 Esse “poder serpentino”, kundalinī śakti, é um equivalente microcósmico da Grande Deusa, cujo esposo divino, Śiva, tem sua própria morada esotérica no topo da cabeça humana. Quando os dois aparecem separados, o resultado é a existência ilusória, impregnada de dor, na qual vivem as pessoas comuns. Se um iogue consegue unir essas duas divindades interiores — fazendo a kundalinī subir pela coluna vertebral até atingir o topo da cabeça, “despertando” os chakras ao longo do caminho — o resultado será o despertar espiritual. Dessa maneira, o iogue adquire imensos poderes e efetivamente se torna um “segundo Śiva”.
Há inúmeras referências aos chakras e à kundalinī nos escritos de Crowley. A primeira menção e descrição dos chakras é dada na quarta parte da série “O Templo do Rei Salomão”, em The Equinox I, 4 (1910), escrita por J. F. C. Fuller, mas incorporando um bom número de citações dos diários de Crowley. Há nesta edição uma ilustração mostrando um iogue com os sete chakras ao longo do eixo central de seu corpo. Posteriormente, Crowley adicionou notas à sua própria cópia do livro, fornecendo a correlação entre os chakras e os graus introdutórios da OTO.63 Não está totalmente claro se a intenção era sugerir que os rituais da OTO de fato “ativam” os chakras durante a iniciação do candidato. No entanto, é importante que as duas tradições esotéricas — representadas por referências à fraternidade mágica ocidental e ao Yoga indiano — tenham sido correlacionadas com base na convergência analógica percebida de suas respectivas propriedades, de sua mútua correspondência conceitual e simbólica.
No que diz respeito ao trabalho prático com os chakras, de particular importância e interesse é o breve manual de instruções de Crowley, intitulado “Liber Yod”.64 O texto é apresentado como fornecendo “três métodos pelos quais a consciência dos Muitos pode ser fundida à do Um”.65 O primeiro método está ancorado na tradição mágica ocidental e consiste em uma série de rituais de banimento que se referem aos planetas, signos zodiacais e, finalmente, às sefirot na Árvore da Vida. Os rituais culminam no banimento, poderíamos dizer, na desconstrução, da ordem simbólica representada pela sefira mais elevada, Kether ou a “coroa”. Nesta fase final, o mago pisa na luz da vela e sai do círculo que simboliza sua consciência individual. Isso representa o retorno à condição primordial anterior à manifestação do universo fenomenal, antes do surgimento do senso separado de identidade e da mente discriminativa.
O segundo e o terceiro métodos são de caráter meditativo.66 O segundo método é um paralelo virtual ao ritual descrito acima, com a diferença de que a técnica de redução da consciência ao estado de unidade funciona pela dissolução da ordem simbólica associada a cada chakra específico:
Que então o Eremita [isto é, o praticante], sentado em seu āsana, medite sobre o chakra mūlādhāra67 e sua correspondência como um poder da mente, e o destrua da mesma maneira como mencionado anteriormente. … Que os outros chakras, por sua vez, sejam destruídos dessa forma, cada um com sua atitude mental e moral. … Por fim, tendo atraído todo o seu ser para o chakra sahasrāra mais elevado, que ele permaneça eternamente fixo em meditação sobre ele. (Crowley, 1997: 644)
O terceiro método sugere a transferência da sede da percepção, volição e sensação (de movimento e outras atividades) para o cakra ājñā.68 “Cuidado ao pensar em ‘meu ājñā’”, alerta Crowley (1997: 646). “Nessas meditações e práticas, ājñā não lhe pertence; ājñā é o mestre e trabalhador, você é o macaco de madeira.” Como esse chakra em particular está associado à sabedoria divina impessoal, a implicação é que o resultado final da prática leva à telescopagem da consciência para a experiência unitiva, além do senso de dualidade. O que precisa ser enfatizado é a capacidade de Crowley de incorporar em um todo significativo o que geralmente é considerado métodos distintos de prática esotérica. O ritual mágico e a meditação iogue são, portanto, reunidos e empregados como meios alternativos a serviço do objetivo comum.
Crowley também forneceu descrições e instruções para o “despertar” da kundalinī śakti. “O Livro do Coração Cingido pela Serpente”,69 um dos livros inspirados ou sagrados de Thelema, é em sua essência uma longa descrição poética da intensa experiência espiritual das “relações do Aspirante com seu Sagrado Anjo Guardião” (Crowley et al., 1996: 87). Os versos iniciais sugerem em termos fortes que a Serpente é, em pelo menos um registro simbólico, representativa da kundalinī “serpente”: “Eu sou o Coração; e a Serpente está entrelaçada / Sobre o núcleo invisível da mente. / Levanta-te, ó minha serpente! Agora é a hora / Da flor inefável, sagrada e encapuzada” (89). Ainda mais importante a esse respeito é o comentário de Crowley sobre um dos versos de O Livro da Lei, no qual ele sugere que o amor, mencionado nas frases “O amor é a lei, o amor sob vontade” (AL I: 57) e “Nem os tolos confundam o amor; pois há amor e amor. Existe a pomba e existe a serpente” (AL I: 57), pode se referir ao “amor serpentino, ao despertar da kundalinī” (78, n.2).
O despertar da kundalinī também é tema do ensaio “Entusiasmo Energizado: Uma Nota sobre Teurgia”, publicado em O Equinócio I, 9 (1913), embora o termo sânscrito em si não seja mencionado no texto. O ensaio descreve um método para induzir o estado de transe com o uso de “vinho, mulher e canção”, fornecendo, além disso, algumas sugestões práticas e interessantes para a prática do canto de mantras. A técnica mais explícita para despertar o “poder da serpente” é, no entanto, apresentada na terceira seção do breve texto intitulado “Liber HHH”.70 Este texto, e especialmente sua terceira seção, é um ótimo exemplo da tendência sincrética tão característica dos ensinamentos de Crowley. Novamente, o termo kundalinī não é empregado (embora outro vocabulário sânscrito que se refira à prática de Yoga esteja lá71); não há dúvida, no entanto, de que a prática se refere a ele.72 A breve descrição da técnica é a seguinte:
O praticante deve sentar-se na postura iogue e imaginar que a cavidade do cérebro é a yoni, ou vagina. Outras imagens também são sugeridas: o útero de Ísis ou o corpo de Nuit. A coluna vertebral deve ser identificada com o lingam, ou “o falo de Osíris, ou o ser de Hadit”.73 Este aspecto da meditação merece um comentário. É típico do tantra projetar entidades divinas no microcosmo humano, mas a disposição de gênero geralmente é invertida: acredita-se que o deus Śiva esteja presente na cabeça, enquanto a deusa reside na base da coluna vertebral.74 O que é importante em ambos os casos, no entanto, é a presença da polaridade sexual dentro do corpo sutil. O praticante agora se concentra no anseio mútuo desses centros sexuais e tenta prolongar esse sentimento o máximo possível. Em seguida, um elemento adicional é adicionado: deve-se imaginar uma corrente de luz passando pela coluna vertebral da maneira mais lenta possível. Finalmente, permite-se ao iogue acelerar a passagem da luz entre os genitais e a cabeça para que a experiência culmine em êxtase orgástico.
Os exemplos acima foram concebidos como ilustração da importância atribuída por Crowley à experiência e ao uso de poderes ocultos dentro do corpo (sutil). Gostaria de sublinhar a semelhança dos métodos de Crowley com os do Tantra, fazendo referência a uma definição recente (White, 2000: 9), segundo a qual “Tantra é aquele… conjunto de crenças e práticas [que]… busca apropriar-se ritualmente e canalizar a energia [divina] dentro do organismo humano, de maneiras criativas e emancipatórias”. De fato, eu argumentaria que a ênfase na kundalinī como “a própria força mágica, o lado manifestador da Divindade do Mago” (Crowley, 1997: 105) representa o elo mais forte entre a magia de Crowley e o Tantra. Como ele escreveu em uma carta ao seu “filho mágico”, Charles Stansfeld Jones: “Todos os métodos mágicos são meramente métodos de despertar a kundalini”. 75
A próxima seção se concentrará no uso da transgressão como ferramenta de libertação espiritual, que é mais um elemento de semelhança entre o modus operandi de Crowley e o do Tantra Indiano.
CEFALÙ: DECADÊNCIA E TRANSGRESSÃO COMO TÉCNICA ESPIRITUAL
Para avaliar melhor as práticas de Crowley que contêm características tântricas, sugiro que nos concentremos em certos episódios controversos76 ocorridos na Abadia de Thelema. A Abadia foi fundada na pequena cidade siciliana de Cefalù, no período entre 1920 e 1923. Consistia em uma grande casa ocupada por um pequeno número de discípulos e amantes de Crowley, e uma construção anexa chamada “Umbilicus”. A vida na Abadia era, em grande parte, uma tentativa de Crowley de traduzir suas ideias mágicas e thelêmicas para a realidade social. Para os participantes, o regime de vida envolvia muita atividade oculta e magia sexual, bem como experimentos com diversas substâncias que alteravam a mente e o humor, como haxixe, cocaína, heroína e ópio.77 Crowley escreveu extensivamente e afirmou ter alcançado o grau mais alto da A∴A∴78 durante esse período, mas a vida na Abadia estava longe do ideal. Além de conflitos e atritos internos, ele e sua comunidade tornaram-se alvo frequente da imprensa marrom, com Crowley sendo rotulado como “o homem mais perverso do mundo” e “o homem que gostaríamos de enforcar”.79 Ele acabou sendo expulso da Itália por ordem de Benito Mussolini.80
Em certo sentido, a vida na Abadia de Thelema pode ser considerada uma representação paradigmática do estilo de vida e da filosofia de Crowley em seus aspectos mais intensos. Ele se considerava o profeta do Novo Éon, que substituiria as antigas religiões patriarcais, exemplificadas mais tipicamente pelo cristianismo. Assim, em um sentido muito importante, ele afirmava sua autoidentidade e seguia sua orientação contra a corrente do que era aceito como normativo pela sociedade, religião e cultura contemporâneas. Gostaria de destacar esse elemento de oposição intencional aos valores sociais normativos e enfatizar sua consanguinidade com a cosmovisão tântrica em geral. A ética do Tantra é frequentemente caracterizada pela oposição à ortodoxia sacerdotal bramânica, e seu método de prática é frequentemente definido como o processo de regressão.81 Essa regressão, ou ir contra a corrente — ultā ou ujāna sādhana — aborda uma série de escolhas de estilo de vida, bem como a metodologia propriamente dita do Yoga tântrico. Crowley (1972: 248; ênfase no original) expressa a mesma orientação quando escreve: “Reconheço a Magia como preocupada em reverter qualquer ordem existente”. Isso implica a transformação e a transcendência da realidade profana cotidiana pelo método de ir contra sua corrente. Dessa perspectiva, o mundo profano está de cabeça para baixo e só se põe em ordem ao ser virado de cabeça para baixo. Esta é uma tarefa difícil, e por essa razão o praticante tântrico é frequentemente descrito como o “herói” (vīra).
Um recém-chegado à Abadia de Thelema deveria passar uma noite no que Crowley chamava de “Chambre des Cauchemars”. O próprio Crowley havia pintado, com cores vivas e imagens sinistras, seus murais representando o inferno, o céu e a terra. A intenção era
fazer com que os estudantes da Sabedoria Sagrada passassem pela provação de contemplar todos os fantasmas possíveis que pudessem assaltar a alma. Os candidatos a essa iniciação são preparados por um processo secreto antes de passarem a noite neste aposento; O efeito é que as figuras na parede parecem realmente ganhar vida, confundindo e obcecando o espírito que ousou confrontar sua malignidade.82
O “processo secreto” provavelmente se referia ao uso de um psicodélico, possivelmente mescalina.83 Crowley descreve o resultado da provação da seguinte forma:
Aqueles que passaram com sucesso pela provação dizem que se tornaram imunizados de toda possível infecção por aquelas ideias do mal que interferem entre a alma e seu Eu divino. Tendo sido forçados a sondar os Abismos do Horror, a confrontar as possibilidades mais medonhas do Inferno, eles alcançaram o domínio permanente sobre suas mentes. O processo é semelhante ao da “Psicanálise”; liberta o sujeito do medo da Realidade e dos fantasmas e neuroses por ela causados, externalizando e, assim, desarmando os espectros que espreitam a Alma do Homem.84
Embora Crowley tenha comparado o processo de enfrentar e superar os próprios medos com o método da psicanálise, há aqui também um paralelo funcional com um procedimento padrão na prática do Tantra, que consiste em passar a noite realizando rituais ou meditando no cemitério ou em um local similar que inspire medo. Mircea Eliade (1969:269; grifo nosso) sugere que, ao meditar no cemitério, o iogue tântrico “alcança mais diretamente a combustão de experiências egoístas; ao mesmo tempo, liberta-se do medo, evoca os terríveis demônios e obtém domínio sobre eles”. Essa é a filosofia do método que carrega associações com o preceito nietzschiano de que o que não mata fortalece.
Em seu estudo sobre o santo bengali Ramakrishna, Jeffery J. Kripal argumentou contra representações excessivamente filosóficas e encobridoras do Tantra. “Com muita frequência, estudiosos equipararam o Tantra a uma escola filosófica consagrada em antigos textos sânscritos”, afirma Kripal (1998: 28),
“e ignoraram as conotações populares do termo Tāntrika, quase todas as quais giram em torno das noções de poder mágico, estranheza, vulgaridade e sexo”. Em vez disso, ele sugere (29; ênfase no original) abordar o Tantra “como um ‘caminho sujo’ para verdades ontológicas tão aterrorizantes quanto profundas”, um caminho que “usa conscientemente a decadência como técnica espiritual”. De forma semelhante, o caminho espiritual de Crowley pode ser conceituado como um uso intencional de “decadência, estranheza, vulgaridade e sexo” como técnicas espirituais que visam superar limitações internas e barreiras psicológicas. Crowley possuía uma compreensão intuitiva do poder transformador da sexualidade desde a juventude. Por exemplo, se acreditarmos em suas Confissões (Crowley, 1969: 80), ele afirmou seu senso de independência e rebelião contra o fanatismo religioso de sua família ao cometer um de seus primeiros atos sexuais com uma criada na cama de sua mãe. Kripal (1998: 32) cita a frase de Ramakrishna: “Vergonha, nojo e medo — estes três não devem permanecer”, como uma das definições de Tantra. Este preceito é igualmente aplicável a Crowley e seus próprios experimentos para vencer a vergonha, o nojo e o medo. Ele argumentou:
O Magista deve conceber para si uma técnica definida para destruir o “mal”. A essência de tal prática consistirá em treinar a mente e o corpo para confrontar coisas que causam medo, dor, nojo, vergonha e coisas semelhantes. Ele deve aprender a suportá-las, depois tornar-se indiferente a elas, depois analisá-las até que proporcionem prazer e instrução e, finalmente, apreciá-las por si mesmas, como aspectos da Verdade. Feito isso, ele deve abandoná-los, se forem realmente prejudiciais à saúde e ao conforto. (1997: 579–80)
Vários exemplos devem dar substância a este assunto.
Em julho de 1920, uma atriz de cinema mudo de Hollywood, Jane Wolfe (1875–1958), juntou-se à comunidade de Cefalù. Antes disso, ela mantinha uma intensa correspondência com Crowley, e havia uma forte atração mútua entre os dois. Quando finalmente conheceu Crowley pessoalmente, ficou horrorizada com sua aparência desleixada e com o estado geral das coisas na Abadia. Só mais tarde ela soube, por outro discípulo de Crowley, que ele estava, na época, passando por uma fase de exposição deliberada ao “mistério da imundície”. 85 Parece que Crowley foi guiado nessa prática por versos de “O Livro do Coração Cingido por uma Serpente”, que afirmam: “Vai aos lugares mais remotos e subjuga todas as coisas. Subjuga teu medo e teu desgosto. Então — rende-te.” 86
Desde o trabalho pioneiro de Mary Douglas (1970), estudiosos têm sido alertados para a complexidade do comportamento e das emoções humanas em torno da questão da pureza e da imundície. Alexis Sanderson contrastou, assim, a fixação bramânica nas regras de pureza com o desrespeito deliberado tântrico pelas mesmas:
A consciência essencial à preservação da pureza e do sistema social deveria ser expulsa de sua identidade pelo Brahman Tântrico como a própria impureza, a única impureza que ele reconheceria, um estado de autoescravidão ignorante através da ilusão de que pureza e impureza, proibição e imposição eram qualidades objetivas que residiam em coisas, pessoas e ações. (1985: 198)
O paralelo funcional a essa orientação espiritual é fornecido na exploração intencional de Crowley do “mistério da imundície”. Ele escreve em seu diário mágico (1972: 257; grifo nosso) sobre “um protesto contra… a ideia de que qualquer coisa é comum ou impura“. Ainda mais intensas nesse aspecto eram algumas formas de sua prática de magia sexual, conduzidas com o mesmo objetivo de transcender o sentimento de vergonha e repulsa.
A principal parceira de Crowley durante os anos de Cefalù foi uma cidadã americana de origem suíça, Leah Hirsig (1883-1975). Ela foi, nesse período, sua “Mulher Escarlate”, um papel designado pelo Livro da Lei, uma contraparte feminina de Crowley como a Besta. (É significativo, à luz das considerações atuais, que Crowley (1974c: 103) defina esses dois oficiais da seguinte forma: “A Besta e a Mulher Escarlate são avatares de… Shiva e Shakti.”) Além de serem as principais parceiras um do outro, Crowley e Hirsig mantinham relações sexuais com outras pessoas. As ideias de Crowley sobre sexualidade estavam em concordância com as injunções liberais expressas em O Livro da Lei, que contém afirmações como “Tome sua plenitude e deseje o amor como quiser, quando, onde e com quem quiser!”87 e “A palavra do Pecado é Restrição. Ó homem! Não recuse sua esposa, se ela quiser! Ó amante, se quiser, afaste-se! Não há vínculo que possa unir os divididos, exceto o amor: todo o resto é uma maldição.”88 Comentando o último verso, Crowley (1996: 42) escreve: “O ato sexual é um sacramento da Vontade. Profaná-lo é a grande ofensa. Toda expressão verdadeira dele é lícita; toda supressão ou distorção é contrária à Lei da Liberdade.” A vida sexual de Crowley era, consequentemente, desinibida e abundante, e incluía relações heterossexuais e homossexuais.89
Com Hirsig, que conheceu na cidade de Nova York em 1918, Crowley explorava algumas áreas mais obscuras da sexualidade desde o início de seu relacionamento. Pode-se dizer com segurança que Eros e Thanatos estavam intensamente interligados e frequentemente se interpenetravam em seu relacionamento. Em sua segunda visita ao estúdio de Crowley, Hirsig posou nua para Crowley. “Quando ela fez a pose, perguntei a ela: ‘Como devo chamar a imagem; como devo pintá-la?’ Ela disse: ‘Pinte-me como uma alma morta.’”90 Em outra ocasião, Crowley escreveu que fazer amor com a anoréxica Hirsig era como fazer sexo com um esqueleto.91 Essa mistura de sexualidade e morte também é típica do Tantra. Seu imaginário está repleto de representações de cópula erótica (maithuna) entre deuses e deusas e ioguinis, e também de motivos de caveiras, sangue derramado, campos de cremação e divindades ferozes, como o deus Śiva em seu aspecto destrutivo como Bhairava e a deusa Kālī, que dança sobre um cadáver com um colar feito de cabeças decepadas. O relacionamento de Crowley com Hirsig tinha, além disso, um forte componente autodestrutivo, que ocasionalmente se manifestava como um impulso masoquista.92 “Quero ser escravo de Leah, seu abjeto”, escreveu ele (1972: 257) em seu Diário. “Quero ab-rogar a Divindade que funde alma em alma.” É nesse contexto relacional que Hirsig impôs a Crowley uma grande provação.93
Algumas escolas de Tantra, mais notavelmente os Aghorīs e, antes deles, os Kāpālikas,94 sustentam que um adepto pode alcançar um poder peculiar, que consiste na capacidade de consumir com equanimidade qualquer tipo de alimento, seja excremento ou carne de cadáver humano. Eliade comenta:
Eles justificam essas práticas dizendo que todas as inclinações e gostos naturais do homem devem ser destruídos, que não existe bem nem mal, agradável ou desagradável, etc. Assim como os excrementos humanos fertilizam um solo estéril, a assimilação de todo tipo de imundície torna a mente capaz de toda e qualquer meditação. (1969: 296-7)95
Da mesma forma, Crowley, enquanto fazia amor com Hirsig, gabou-se de sua capacidade de transmutar até mesmo aquilo que detestava pelo poder do amor e de “torná-lo o Corpo ou Sangue de Deus, consumi-lo, adorá-lo e deleitar-me nele, nutrir e energizar minha alma com isso” (1972: 235). Nesse momento, Hirsig ofereceu a Crowley seus excrementos e exigiu que ele praticasse o que pregava. Crowley relutou. “Falso Sacerdote”, respondeu Hirsig, “rasgue seu manto: perjuro a Mim, para fora do meu Templo!” Finalmente, ele obedeceu: “Minha boca queimava; minha garganta engasgava; meu ventre se contorcia; meu sangue fugia para onde sabe-se lá, e minha pele suava.”96 Mas ele obedeceu; comeu a “Eucaristia” e passou no teste: “Sou de fato o Sumo Sacerdote. Não mais me envergonharei, nem nesse assunto nem em outro” (235).97 Apesar da oposição instintiva interna à experiência, ele havia demonstrado de forma física sua adesão ao credo, que afirma que não deve haver diferença entre as coisas,98 que afirma que “Todos os fenômenos são sacramentos” (Crowley, 1997: 95), e que vê cada parte do corpo humano como divina.99
O episódio acima é melhor compreendido se lido à luz de uma observação pertinente de Gerald Yorke. Segundo Yorke, “Crowley não gostava de suas perversões! Ele as praticava para superar seu horror a elas”. 100 Comentando essa declaração, o biógrafo de Crowley, Richard Kaczynski (2003: 284), sugere que, ao seguir esses métodos, a Grande Besta buscou “reprogramar sua mente dos costumes vitorianos”. Mas a busca intencional por essas experiências, que se encara com “vergonha, medo e repulsa”, também é uma orientação distintiva no método do Tantra, seja conceituado como o “uso consciente da decadência como técnica espiritual” (Kripal, 1998: 29) ou como o caminho que busca “poder através da impureza” (Sanderson, 1985: 200). Como sugere Kripal (1998: 290), é uma noção tântrica que “poluição e impureza podem ser usadas para induzir estados místicos”. Além disso, o método de magia sexual de Crowley guarda uma “semelhança familiar” com o Tantra indiano, devido à importância primordial atribuída ao corpo humano. No Tantra, assim como na magia de Crowley, o corpo humano é tanto o instrumento quanto o locus da gnose. Pode-se generalizar que, tanto no esoterismo indiano quanto no ocidental, há uma tendência a sublimar o objetivo da busca religiosa. Crowley assemelha-se aos praticantes tântricos que defendem a necessidade ou mesmo a supremacia da experiência corporificada e da gnose corporal. Essa atitude também é condizente com a alquimia como a ciência das transformações (de “metais básicos” em “ouro”), e é interessante notar que na Índia havia uma estreita conexão entre o Yoga tântrico e os métodos de alquimia. No caso de Crowley, essa orientação foi mais uma aplicação de seu preceito fundamental de que “Não há deus senão o homem”.101
CONCLUSÕES
As conexões de Aleister Crowley com o Yoga e o Tantra indianos eram consideráveis e complexas. Ele teve contato direto com algumas formas dessas práticas e estava familiarizado com a literatura contemporânea sobre os temas, escreveu extensivamente sobre eles e — o que talvez seja mais importante — os praticava. Em sua avaliação do valor do Tantra, Crowley estava à frente de seu tempo, que habitualmente o considerava uma forma degenerada de hinduísmo. Em vez disso, ele (Crowley, 1991d: 74) afirmou que, “Por mais paradoxal que possa parecer, os tântricos são, na realidade, os mais avançados entre os hindus”. A influência de Crowley em trazer as tradições esotéricas orientais, principalmente indianas, para o Ocidente se estende também à sua incorporação dos elementos do Yoga e do Tantra na estrutura de duas influentes Ordens mágicas, a A∴A∴ e a OTO. Além disso, em seus escritos teóricos, Crowley destaca-se por sua prática de concordância, na qual buscava consistentemente enfatizar a similaridade dos princípios envolvidos no Yoga e na magia. Em uma de suas obras finais, uma coletânea de cartas a um discípulo, publicada postumamente, ele escreveu:
À primeira vista, os dois parecem opostos, mas quando se avança um pouco em ambos, descobre-se que a concentração aprendida no Yoga é de imensa utilidade para alcançar os poderes mentais necessários na Magia; por outro lado, a disciplina da Magia é de grande utilidade no Yoga. (1991d: 492)
Ele passou a considerar essas duas tradições como duas orientações no mesmo caminho, uma consistindo em “Vontade de Morte”, ou introversão (Yoga), e a outra sendo “Vontade de Vida”, ou extroversão (magia).102 Devido à enorme influência que Crowley continua a exercer sobre o ocultismo ocidental, não há dúvida de que suas interpretações do Yoga e do Tantra também terão grande importância.
Foi observado, mais recentemente por Urban,103 que Crowley, por um lado, não conhecia muito do verdadeiro Tantra e, por outro, o interpretou erroneamente como uma prática exclusivamente sexual. Essa visão tem seus méritos, mas pode ser contestada, em particular a sugestão de que Crowley confundiu Tantra com sexualidade. Não há dúvida de que existem diferenças entre o que Crowley chamou de Tantra e o que está implícito nessa denominação na Índia. No entanto, isso é uma ocorrência regular sempre que ocorre apropriação cultural de algumas ideias e práticas estrangeiras.104 Como o próprio Urban (2003c: 3) escreveu em outra ocasião, é “a própria natureza do diálogo intercultural [que] as interpretações mútuas e errôneas… ocorrem em todo encontro intercultural”.105 As diferenças regionais entre as várias formas de budismo são um exemplo disso. Devemos argumentar que o Zen não é budismo porque difere em discurso e metodologia do Theravada? Igualmente importante, não devemos presumir que o Tantra seja um fenômeno unificado.106 Há, às vezes, diferenças significativas entre (para mencionar apenas alguns exemplos) os budistas Shingon japoneses, os praticantes do sistema Kālacakra tibetano, os sahajiyās vaisnavas indianos, os iogues Nāth, os bauls bengalis e as ideias e práticas observadas entre os devotos da Deusa Kālī.107 O nascente Tantra ocidental, significativamente influenciado por Crowley,108 difere do acima, mas não a ponto de não ter caráter tântrico.109 Finalmente, Crowley não relacionou exatamente o Tantra à sexualidade, como uma leitura cuidadosa de sua obra confirmará. A confusão entre essas duas categorias é, na verdade, um legado dos biógrafos e intérpretes de Crowley, enquanto ele próprio é em grande parte inocente da acusação. Na verdade, ele ficou mais impressionado com a avaliação positiva do Tantra sobre o universo fenomenal e a experiência humana e, por essas razões, classificou-o como uma Escola Branca de Magia, semelhante à sua própria Thelema.110 Como já argumentado, ele também se assemelhava aos tântricos em suas práticas contraculturais e antinomianas e em sua abordagem do corpo humano e da sexualidade como instrumentos de libertação. Por essas razões, é significativo falar do “Tantra de Crowley” como um paralelo funcional, uma variedade, do Tantra indiano, com o qual guarda uma semelhança familiar, uma similaridade formal.111
O estilo de vida não convencional de Crowley foi motivo para inúmeros e graves mal-entendidos. Sua oposição à moralidade, religião e cultura predominantes deu origem à imagem popular dele como um “satanista”,112 o que ele enfaticamente não era, pelo menos porque não se identificava como tal. Como qualquer outra oposição binária, o cristianismo e o satanismo estão enredados em uma teia de correlação mútua e codependência. Eles habitam um universo comum de discurso, embora com conjuntos de valores diferentes. Crowley era sobre algo diferente. Ele era um Thelemita. Era também uma pessoa profundamente imersa na prática do que designava como Magia, cuja parte considerável envolvia a prática de Yoga e, em menor grau, Tantra. Sendo um filho de seu tempo, ele também compartilhava alguns equívocos típicos sobre essas tradições.113 Ele também era, infelizmente, perfeitamente capaz de exibir, ocasionalmente, uma atitude de supremacia colonial (e de gênero). No entanto, é crucial que a vida e a obra de Crowley sejam avaliadas não em relação a algum cânone abstrato de verdade e moralidade, mas à luz dos princípios que são condizentes com seus métodos. Além disso, é preciso lembrar que, apesar de sua erudição, ele não era um estudioso, mas principalmente um praticante de esoterismo. Em certo sentido, parte do que ele tentava fazer era se libertar das restrições dos limites vitorianos à autoidentificação. Como sugeriu Alex Owen (2004), Crowley pertencia ao grupo de pessoas cuja experiência da modernidade incluía a busca por um novo eu, flexível e mágico, potencialmente divino. Para alcançar a liberdade da “vergonha, do nojo e do medo” que obscurecem a experiência desse eu, Crowley — como muitos outros esoteristas do século XX e contemporâneos — engajou-se em práticas de caráter sincrético. Deixando de lado toda a sabedoria ou insensatez de tal empreitada, no que diz respeito ao estudo acadêmico da vida e obra de Crowley, uma abordagem interdisciplinar, envolvendo, entre outras coisas, o estudo comparativo das tradições esotéricas orientais e ocidentais, parece ser o método mais construtivo a ser adotado. O próximo capítulo tentará abordar esse estudo comparativo.