
Metafísica do Sexo
Por Julius Evola, Tradução de Fernando Ribeiro de Melo. Revisão de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares, @conhecimentosproibidos e @magiasinistra.
Já mencionamos que, na obra de Platão, Diotima, depois de ter falado da imortalidade temporal na espécie, alude aos «mais altos mistérios revelados». Ocupando-se deles, Diotima retoma de certo modo uma teoria que em «O Banquete» tinha sido atribuída a Pausânias: ou seja, de que existem duas Afrodites, a Afrodite Urânia e a Afrodite Pandémia (NOTA 34), sendo uma o amor vulgar e outra o amor de caráter divino.
Entramos desta forma num domínio de certo modo problemático. Em primeiro lugar, parece-nos que não tem qualquer relação com os mistérios mais altos, mas sim com o puro humanismo de cultura, quando Diotima contrapõe àqueles que geram carnalmente os que dão vida a filhos imortais através das suas criações de artistas, de legisladores, de moralistas e seres similares. «Já lhes foram dedicadas numerosas formas de culto» — diz Diotima (NOTA 35) — «graças a esses filhos tão extraordinários, enquanto que ninguém recebeu tal honra por ter gerado filhos segundo a natureza humana.» Uma tal imortalidade, reduzida à pura sobrevivência na fama e na memória dos homens, é eventualmente ainda mais efêmera do que a própria sobrevivência na espécie; encontramo-nos num domínio totalmente profano e quase do mesmo sentido daquele que, ironicamente, fez chamar «Imortais» aos membros muito mortais da Academia Francesa. Os Mistérios helênicos já tinham porém ensinado que homens como por exemplo Epaminondas ou Agesilau, com direito a aspirar a esta imortalidade, não deveriam esperar um destino privilegiado depois da morte, destino esse de que até malfeitores poderiam ter beneficiado, no caso de terem sido iniciados (NOTA 36). Contudo Diotima, acreditando que essas obras humanas imortalizadoras teriam sido inspiradas pela beleza, passa a tratar do amor despertado por ela, expondo uma espécie de estética-místico-estática.
Esta teoria pouco nos oferece que possa ser utilizado na solução do problema tal como o expusemos, pois parte de um dualismo que, no fundo, torna o conjunto assexual. Fala-se efetivamente, neste momento, de um Eros que já não é suscitado pela mulher, pela relação magnética com uma mulher, mas sim desperto pela beleza que lentamente já não é até a beleza dos corpos, nem a beleza de um ser ou de um objeto particular, mas sim a beleza abstrata ou, mais propriamente, a beleza como ideia (NOTA 37). O próprio mito que serve de chave modifica-se: o eros que está sob o signo de Afrodite Urânia identifica-se ao que na «Fedra» se baseia na anamneses, na «recordação» não do androginato mas do estado pré-natal, quando a alma contemplava o mundo divino e assim «se realizava aquilo a que é permitido chamar a mais bem-aventurada das iniciações celebrada como seres perfeitos.» (NOTA 38) O amor verdadeiramente ligado ao sexo é, ao contrário, apresentado como um corcel negro do carro simbólico da alma que vence o corcel branco (NOTA 39) quase como uma queda devida a um erro da recordação transcendental: «Aquele que não tem uma recordação recente das visões bem-aventuradas lá do Alto, ou que as esqueceu por completo, não relaciona imediatamente com a essência da beleza a sua imagem cá na Terra: esta é a razão por que não a venera quando a vê, antes de se abandonar ao prazer, pensando apenas em acasalar-se e em procriar à maneira dos animais (NOTA 40).» Daí a seguinte e assaz problemática definição do amor corrente: «Chama-se amor… à paixão que, desprovida de razão, prevalece sobre a reflexão acerca do que é belo e se deixa transportar pelo prazer que deriva da beleza, prazer que se avoluma cada vez mais através de paixões afins na cobiça da beleza física (NOTA 41).» Tendo definido o verdadeiro amor como «o desejo de beleza», Marsílio Ficino (NOTA 42) dirá depois que a «fúria venérea», «o desejo do coito e do amor não são constituídos pelos mesmos movimentos, antes se manifestam como movimentos contrários» (NOTA 43).
Neste conjunto somente poderá utilizar-se a ideia de um eros cuja degradação animal e genésica é impedida por meio de transposição e exaltação, com a condição de continuar a estar relacionado com a mulher e a polaridade sexual: voltaremos a falar sobre este fato ao estudarmos, por exemplo, o lado interno do «amor cortês» medieval. Com a teoria do amor considerado como desejo de beleza pura e abstrata, poderemos, ao contrário, manter-nos no domínio da metafísica, mas sairemos certamente do âmbito da metafísica do sexo. Temos também razões para duvidar que esta teoria esteja, tal como pretende Diotima, ligada a um qualquer ensinamento dos Mistérios. Embora vejamos reaparecer na misteriosofia e no esoterismo das mais diversas tradições o tema do androginato, o mesmo não poderá dizer-se do «amor platônico» (NOTA 44). Este tema apresenta-se até nos seus desenvolvimentos sucessivos durante a época da Renascença, quase exclusivamente como simples teoria filosófica: não são conhecidas quaisquer escolas místicas ou de Mistérios em que tenha surgido graças a ele uma técnica do êxtase seguida efetivamente, enquanto que na mística plotiniana da beleza encontramos um caráter diferente (em Plotino o belo vem pelo contrário relacionado com «a idéia que liga e domina a natureza inimiga privada de forma». Daí resulta igualmente uma relação, que sai por completo do âmbito das tensões eróticas e do sexo, com a beleza própria a uma forma e a um domínio interior, manifestada «na grandeza de alma, na justiça, na pura sensatez, na energia viril do rosto severo, na dignidade e no poder que se revelam numa atitude intrépida, firme, impassível e, a nível mais elevado, numa inteligência digna de um deus, resplandecendo sobre tudo quanto é exterior» (NOTA 45). Não saberíamos, pois, dizer até que ponto depende da diferente constituição do homem moderno achar ou não justa a ideia de Kant, de Schopenhauer e de certas estéticas recentes, segundo a qual o caráter específico do sentimento estético, isto é, da emoção despertada pelo «belo», depende do seu «apolinismo», da sua ausência total de relação com a capacidade de desejo e com o eros. Se quisermos tomar o sexo em linha de conta será pois extremamente banal a observação de que a mulher que se considera unicamente sob o aspecto de beleza pura não é a mulher mais apta a despertar o magnetismo sexual e o desejo; o mesmo se dá com o caso de uma estátua nua em mármore, cuja contemplação poderá despertar uma emoção estética mas que nada nos diz em matéria do eros. Falta-lhe a qualidade yin, o demoníaco, o abissal, o fascinante (NOTA 46). É frequente ver que as mulheres que mais êxito obtêm não podem ser consideradas propriamente belas.
Assim, a teoria platônica de beleza constitui qualquer coisa de especial, que não é facilmente inteligível em termos existencialistas. Poder-se-ia, em resumo, relacionar o amor platônico a uma embriaguez particular, semimágica, semi-intelectual (embriaguez das formas puras) e como tal distinta da «via úmida» do amor dos místicos e inseparável do espírito duma civilização que, tal como a civilização helênica, vê o crisma do divino em tudo quanto é limite e forma perfeita (NOTA 47). Quando se aplicam concepções deste gênero ao domínio das relações entre os dois sexos, o resultado é um dualismo paralisante. Veremos por exemplo um Giordano Bruno, que ao tratar os eroici furori segundo a teoria platônica começa por atacar violentamente aquele que obedece ao amor e ao seu desejo pela mulher, dando-nos desta uma imagem impiedosa: «Esse extremo insulto, esse erro da natureza que nos engana com uma fachada, uma sombra, um fantasma, um sonho, um encantamento círceo posto ao serviço da procriação através da sua beleza, que surge e passa, nasce e morre, floresce e apodrece; e (a mulher) é assim algo bela no exterior, pois o seu ser profundo e verdadeiro contém permanentemente uma mistura, um comércio, uma alfândega, um mercado de tantas porcarias, tóxicos e venenos quantos a nossa natureza madrasta pôde produzir: e que depois de recolher a semente com que a servimos paga-a muitas vezes com cheiro fétido, arrependimento, tristeza, fadiga… tantos e tantos males evidentes para toda a gente (NOTA 48).» Por esta razão Giordano Bruno gostaria que as mulheres fossem celebradas e amadas somente «por tudo quanto se deve àquele pouco, àquele tempo, àquela ocasião, se não têm outras virtudes além das naturais, isto é, por essa beleza, esplendor, serviço sem o que teriam vindo ao mundo com a inutilidade de um cogumelo venenoso que ocupa a terra em detrimento de uma planta melhor» (NOTA 49). Podemos daqui deduzir claramente que a concepção do duplo eros conduz a uma «primitivização» e a uma degradação de toda a espécie de amor sexual e ao desprezo das suas possibilidades mais profundas. No epílogo desta obra de Giordano Bruno, Júlia, símbolo da verdadeira mulher, diz aos amantes a que se recusou que «foi verdadeiramente graças à minha recalcitrante mas também simples e inocente crueldade», que lhes concede favores incomparavelmente maiores, «favores que de nenhum modo poderiam ter obtido através da minha indulgência»; pois ao desviá-los do amor humano tinha conduzido o seu eros para a beleza divina (NOTA 50). A cisão é aqui completa e a direção difere daquela que poderia estar de qualquer modo relacionada com o sexo, mesmo nas suas formas «exaltadas»! (NOTA 51)
Plotino soube manter toda esta ordem de ideias «platônicas» dentro do seu justo limite, ao considerar para além do homem que «só ama a beleza», «aquele que o amor impele a união e tem ainda o desejo de imortalidade no que é mortal, procurando o belo numa procriação e numa forma de beleza que se continua». «Assim, aqueles que amam a beleza nos corpos, embora o seu amor seja um amor misto, amam todavia a beleza — e ao amar as mulheres para perpetuar a vida, amam o que é eterno (NOTA 52).»
NOTAS
34 «O Banquete», 180 d-e.
35 Ibid., 209 d-e.
36 Cfr. DIÓGENES LAÉRCIO, VI, II, 29.
37 «O Banquete», 210-a, 212-a.
38 «Fedro», 248-250.
39 Ibid., 248, 254-a.
40 Ibid., 250-e.
41 Ibid., 238-b-c.
42 Sopra lo Amore, VII, 15; I, 3.
43 Ibid., I, 3, em FICINO (ibid., VI, 14) mas sobretudo em PLATÃO (cf. «O Banquete», 181-c), surge a ideia curiosa de considerar o amor homossexual pelos efebos como o sentimento mais próximo do amor inspirado pela beleza pura e por Afrodite Urânia, superior ao eros despertado por uma mulher, pois no segundo caso ser-se-ia impelido num grau mais elevado pela voluptuosidade do ato venéreo, sendo o amor homossexual quase que o único que não tem um desenvolvimento carnal; o discurso do Alcibíades em «O Banquete» (págs. 214 e ss.) mostra de forma demasiado clara quão pouco «platônico» podia ser o amor helênico pelos adolescentes. Voltaremos a tratar deste assunto no apêndice ao presente capítulo. PLOTINO (Enn., III, v. I, III, v. 7) considera, ao contrário, o amor homossexual como sendo vergonhoso e anormal, como que doenças de degenerados «que não derivam da essência do ser nem são consequências do seu desenvolvimento».
44 Tanto quanto sabemos, o único caso é constituído pelo nazar-ilâ-l-mord de certos meios iniciáticos árabes, que retoma o tema do amor platônico de «Fedro», baseado na beleza encarnada pelos efebos, e procura legitimar-se com as seguintes palavras do Profeta: «Eu vi o Senhor na forma de um adolescente imberbe.»
45 PLOTINO, Enneadi, I, vi, 3; vi, 5.A METAFÍSICA DO SEXO 8
46 STENDHAL (De l’Amour, XX) depois de ter afirmado: «O amor-paixão é superior ao amor pela beleza» acrescenta: «Talvez os homens que não são susceptíveis de sentir o amor-paixão sejam aqueles que sentem mais vivamente o efeito da beleza; é esta, pelo menos, a impressão mais forte que podem receber da mulher.»
47 Numa civilização diferente, mesmo que não se considerem as realizações profundas que resolvem o problema duma existencialidade fraturada e angustiada, mas unicamente simples pressentimentos da transcendência, dá-se o caso de estes pressentimentos serem favorecidos não tanto pela beleza de – uma mulher ou de um efebo ou até de certas obras ou instituições humanas, como pela contemplação daquilo que na natureza, de certo modo, reflete esta transcendência sob a forma de uma elementaridade, de uma infinidade e de uma imensidade afastada do humano.
48 G. BRUNO, Degli eroici furori, Proemio, ed. Universale, págs. 6-7.
49 Ibid., pág. 8.
50 Ibid., II, 5.
51 Uma consequência particular da teoria do amor como «desejo de beleza» é que, dado a beleza somática ser apenas gozada através da vista, todos os outros sentidos, exceto este, deveriam ser excluídos do eros e remetidos para o domínio do amor bestial. Este fato faz M. Ficino escrever (op. cit., II, 8): «A paixão do tacto não faz parte do amor, não constitui um sentimento dos amantes, mas sim uma espécie de lascívia e perturbação do homem servil.» Assim como reconhecemos o papel essencial que desempenha o olhar na magia do sexo, também o contribuição que fornecem tanto o tato como o olfato para desenvolver e intensificar o estado sutil do eros, são um fato reconhecido.
52 PLOTINO, Enn., I, v. I.
SOBRE O REVISOR
Ícaro Aron Soares, é colaborador fixo do PanDaemonAeon e administrador da Conhecimentos Proibidos e da Magia Sinistra. Siga ele no Instagram em @icaroaronsoares, @conhecimentosproibidos e @magiasinistra.