As Origens Sagradas e Sinistras da Magia Sexual

Magia Sexualis: Sexo, Magia e Liberação no Esoterismo Ocidental Moderno

Por Hugh B. Urban, Magia Sexualis: Sex, Magic and Liberation in Modern Western Esoterism, Primeiro Capítulo. Tradução de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares.

O PESADELO RECORRENTE, O SEGREDO ELUSIVO: RAÍZES HISTÓRICAS E IMAGINÁRIAS DA MAGIA SEXUAL NA TRADIÇÃO OCIDENTAL

Todo o poder da Magia se baseia em Eros. A maneira como a Magia funciona é unir as coisas por meio de sua similaridade inerente.

– Marsílio Ficino, De Amore (Sobre o Amor).

O amor é um dos grandes instrumentos do poder mágico, mas é categoricamente proibido ao Mago, pelo menos como invocação ou paixão. Ai do Sansão da Cabala se ele se deixar adormecer por Dalila!… O amor sexual é sempre uma ilusão, pois é o resultado de uma miragem imaginária.

– Eliphas Lévi, Dogma e Ritual da Alta Magia.

Sexo, magia e segredo estão intimamente associados há muito tempo no imaginário ocidental. Desde pelo menos os primeiros séculos da Igreja Cristã, acreditava-se frequentemente que a licenciosidade sexual andava de mãos dadas com a experimentação em artes ocultas e rituais secretos. Por outro lado, grupos religiosos heréticos eram tipicamente acusados ​​das mais perversas atividades sexuais. Uma das acusações mais comuns contra os gnósticos pelos primeiros padres da Igreja era a de hedonismo e abandono sexual no curso de seus ritos obscenos, e essa acusação de licenciosidade sexual e ritual obsceno se repetiria ao longo da Idade Média tardia, na guerra da Igreja contra várias outras heresias, desde os cátaros no século XIII até os Cavaleiros Templários no século XIV, passando pelos julgamentos de bruxas nos séculos XV, XVI e XVII. Como observa Robert Lerner, “hereges de todos os tipos eram simplesmente considerados imoralistas”.¹ Repetidamente e com notável consistência, surgiu uma narrativa que ligava a relação sexual a um poder perigoso e, por sua vez, ligava a transgressão sexual a rituais ocultos e à inversão obscena da prática religiosa. Até mesmo os expoentes mais renomados da magia, como o ocultista do século XIX Eliphas Lévi, citado acima, alertavam para o poder impressionante e o terrível perigo associado à relação sexual. Como observa David Frankfurter, o medo dessa união profana entre licenciosidade sexual e magia negra é uma das fantasias mais persistentes no imaginário ocidental nos últimos dois mil anos.²

Mas quanto dessa associação entre sexualidade e magia tem alguma base histórica real, e quanto é pura ficção ou simplesmente as próprias “fantasias do mundo invertidas” da sociedade ocidental?³ Houve alguma prática generalizada de magia sexual antes do século XIX, ou o próprio conceito de magia sexual é simplesmente uma tentativa moderna de encenar uma fantasia recorrente que tem atormentado o imaginário ocidental por dois milênios?

A associação entre sexo e magia não é de forma alguma uma ideia nova no estudo comparativo moderno da religião. Os primeiros antropólogos e historiadores das religiões, de Sir James George Frazer a Mircea Eliade, compilaram uma grande quantidade de dados sobre vários cultos de fertilidade ao redor do mundo, que se acreditava vincularem licenciosidade sexual e comportamento orgiástico a ritos de fertilidade e cerimônias agrícolas. Assim, Eliade vê a orgia como uma forma básica e difundida de ritual “mágico-religioso” que visa tanto aumentar a fertilidade das plantações quanto restaurar a humanidade ao caos primordial e informe do qual toda a vida procede: “A orgia faz fluir a energia sagrada da vida.”4

Orgias rituais… são atestadas entre populações tão diferentes quanto os curdos, os tibetanos, os esquimós, os malgaches, os díaks ngadju e os australianos. Os incentivos são múltiplos, mas geralmente tais orgias rituais são realizadas para evitar uma crise cósmica ou social… ou para dar suporte mágico-religioso… liberando e intensificando os poderes adormecidos da sexualidade… Relações sexuais indiscriminadas e excessivas mergulham a coletividade na era fabulosa dos primórdios.5

Outros historiadores, como Narendranath Bhattacharyya, chegaram a argumentar que existe um substrato matriarcal arcaico por trás de todas as religiões da Índia, do Oriente Médio e da maior parte do mundo antigo, enraizado em uma forma de magia sexual. Acima de tudo, sugere Bhattacharyya, os antigos cultos às deusas Cibele, Ísis, Astarte e às deusas-mães indianas estão enraizados em “ritos sexuais primitivos baseados na associação mágica da fertilidade natural e humana”.6

Não é de surpreender que autores populares contemporâneos tenham levado esse argumento ainda mais longe, argumentando que a magia sexual é, de fato, uma das mais antigas e universais formas de espiritualidade humana. “A magia sexual é tão antiga quanto a humanidade”, escreve o popular magista sexual Don Webb.7 Outro guru neotântrico, Nik Douglas, argumenta que a magia sexual e o Tantra podem ser rastreados até o Paleolítico, quando o sexo espiritual emergiu como a “Mãe da Crença Espiritual” original para todas as civilizações posteriores. “Foi durante o Paleolítico da Era Glacial que os fundamentos da magia e do misticismo foram estabelecidos, com o sexo como pedra angular. Nessa era, o sexo era, sem dúvida, um mistério espiritual.”8 Essa ideia é, na verdade, o ponto de partida para o romance O Código Da Vinci, de Dan Brown, que imagina uma antiga tradição de matriarcado, adoração à deusa e ritual sexual na base do próprio cristianismo primitivo, que mais tarde foi relegada à clandestinidade pela Igreja Católica.

Embora não haja muitas evidências para desacreditar essas teorias de um substrato arcaico generalizado de adoração à deusa e magia sexual, também não há muito que as apoie. De fato, devemos ser extremamente desconfiados de todas essas alegações abrangentes, em grande parte a-históricas, que normalmente nos dizem muito mais sobre as agendas pessoais, sociais e políticas dos estudiosos que as fazem do que sobre outras culturas ou eventos históricos reais.9 O que devemos fazer, em vez disso, penso eu, é analisar criticamente os dados que temos disponíveis hoje e questionar tanto as narrativas mais fantásticas quanto as mais críveis em torno da magia e da sexualidade, levando ambas a sério como componentes-chave na imaginação moderna da magia sexualis.

Neste capítulo, examinarei as raízes imaginárias e históricas da magia sexual no Ocidente. Como Norman Cohn argumentou, parece haver uma fantasia recorrente de magia negra e sexualidade ilícita que permeia grande parte da história ocidental, desde a Igreja Cristã primitiva até a época da caça às bruxas. Esta é a história do que Cohn chama de “demônios interiores da Europa”, ou a projeção dos próprios impulsos e desejos violentos da Europa cristã em grupos marginalizados, como hereges e bruxas. A fantasia resultante de sexo e magia negra é, portanto, uma espécie de “retorno do reprimido”, o retorno da própria negação do corpo, da natureza e da sexualidade pelo cristianismo, de forma monstruosamente distorcida.10 Como Charles Zika sugeriu recentemente, no entanto, essas fantasias de magia e transgressão nunca foram simplesmente uma questão de negação repressiva. Em vez disso, eram também maneiras de os europeus medievais explorarem, expressarem e até mesmo desfrutarem de desejos transgressivos: “a repressão também trata de explorar os prazeres do desejo, da sedução, do corpo: a história da disciplina também é uma história do excesso”.11

Para usar uma frase de Michael Taussig, poderíamos dizer que essa narrativa é uma forma de mimese, ou uma projeção de fantasias e desejos profundamente arraigados em certos “outros” sociais ou políticos. Como sugere Taussig, a mimese está particularmente em ação durante as lutas pelo poder entre grupos dominantes e oprimidos — por exemplo, entre autoridades coloniais e povos nativos, entre brancos e negros, ou entre nazistas e judeus: “O racismo é o campo de desfile, onde os civilizados ensaiam essa relação de amor e ódio com sua sensualidade reprimida, com o faro do judeu, seu ‘instinto de avareza’, a negritude do negro, sua suposta sexualidade.”12 No entanto, ironicamente, mesmo quando condenam grupos marginais como selvagens ou irracionais, as facções dominantes frequentemente imitam essa mesma selvageria em sua opressão desses grupos: “A magia da mimese reside na transformação operada na realidade ao reproduzir sua imagem… Tal mimese ocorre por um espelhamento da alteridade que reflete a barbárie de suas próprias relações sociais, mas como imputada à selvageria que anseiam colonizar.”13 Muitas vezes, essa projeção mimética centra-se especificamente em torno do sexo — o intenso poder sexual, ao mesmo tempo assustador e tentador, tão frequentemente atribuído aos primitivos e a outras raças.14 É precisamente esse tipo de projeção mimética de imoralidade sexual e poder perigoso que vemos repetido ao longo da história religiosa ocidental. Nas perseguições aos gnósticos, aos cátaros e às bruxas, vemos muitas das mesmas fantasias e desejos sexuais reprimidos projetados pela “magia da mimese” sobre uma série de outros marginalizados.

No entanto, ao mesmo tempo, essa associação entre sexo e magia não era inteiramente uma projeção ou fantasia deslocada. Em vez disso, argumentarei, existe uma corrente profunda que percorre o esoterismo ocidental que conecta os poderes do sexo e da magia e, assim, formaria a base para a magia sexual moderna. Da antiga magia do amor grega, passando pelo gnosticismo e hermetismo primitivos, até a cabala judaica e a magia renascentista, existe uma tradição esotérica muito antiga que conectou os mistérios do amor sexual aos do ritual mágico. A prática moderna da magia sexual que surgiu nos séculos XIX e XX, argumentarei, é em grande parte uma fusão complexa dessas tradições imaginárias e históricas, entrelaçando tanto as fantasias de ritos sexuais transgressivos quanto a prática real da magia erótica na tradição esotérica ocidental.

FANTASIAS DO MUNDO VIRADAS DE CABEÇA PARA BAIXO: LICENCIOSIDADE SEXUAL E PERVERSÃO RELIGIOSA NO IMAGINÁRIO OCIDENTAL

O famoso gesto de Adão cobrindo seus genitais com uma folha de figueira se deve, segundo Agostinho, não ao simples fato de Adão ter vergonha da presença deles, mas ao fato de seus órgãos sexuais se moverem sozinhos, sem o seu consentimento. O sexo na criação é a imagem do homem revoltado contra Deus… Seu sexo descontrolado é exatamente o mesmo que ele próprio tem sido em relação a Deus — um rebelde.

– Michel Foucault.

Embora me envergonhe verdadeiramente pelas coisas vergonhosas que fizeram… não obstante, não hesitarei em dizer o que eles não hesitaram em fazer, de modo a despertar em meus leitores um horror arrepiante por seu comportamento escandaloso.

Após a cópula, como se o crime de sua prostituição não bastasse, eles oferecem sua vergonha ao céu.

– Epifânio, Panário, descrevendo a seita gnóstica dos fibionitas

Grande parte da inspiração para o surgimento da magia sexual no século XIX é claramente extraída de fontes imaginárias. Ou seja, ela se baseou em uma longa tradição de narrativas fantásticas sobre orgias selvagens, rituais bizarros e ocultismo obsceno, que tinham pouca base na realidade, mas um impacto duradouro no imaginário popular por milênios. Para citar apenas alguns exemplos: quando Aleister Crowley criou sua “Missa Gnóstica” para a Ordo Templi Orientis — centrada no sacerdote “perfurando” a sacerdotisa com sua “lança sagrada” — ele estava, na verdade, imitando as acusações fantásticas e amplamente infundadas de licenciosidade sexual que eram comumente dirigidas aos gnósticos pela igreja primitiva. Em outras palavras, ele não estava recriando um ritual real, mas encenando a fantasia sombria de uma Eucaristia invertida que obcecava e aterrorizava a igreja cristã primitiva. Da mesma forma, quando Gerald Gardner apresentou seu “Grande Rito” para bruxas modernas — um rito que envolvia relações sexuais entre parceiros masculinos e femininos — ele não estava seguindo nenhum ritual antigo ou tradicional. Em vez disso, ele estava imitando o estereótipo de bruxaria e sexo que perdurou no imaginário ocidental por pelo menos mil anos. E talvez o mais óbvio seja que a moderna “Missa Negra” realizada pela Igreja de Satan — celebrada sobre o corpo de uma mulher nua — é claramente uma zombaria da fantasia sombria de uma Missa Satânica que assombra o imaginário cristão há séculos.

As origens dessas narrativas fantásticas de ritual orgiástico e magia negra são, sem dúvida, muito antigas e provavelmente anteriores à ascensão do cristianismo. Já podemos ver as sementes dessa narrativa nas descrições de algumas das religiões de mistério gregas e romanas e, acima de tudo, no culto a Baco/Dionísio. Embora pouco se saiba sobre o conteúdo real dos mistérios dionisíacos — que eram tão diversos e variados quanto os muitos mitos que cercavam o próprio deus — eles parecem ter se centrado, pelo menos em parte, em torno do culto fálico, da intoxicação e dos excessos rituais.15 Mas, qualquer que seja seu conteúdo real, os mistérios dionisíacos logo se tornariam intimamente associados à licenciosidade sexual, à violência extrema e, frequentemente, à atividade criminosa no imaginário grego e romano. Já no século V a.C., como vemos na tragédia clássica de Eurípides, As Bacantes, o culto a Dionísio havia se tornado amplamente associado a rituais orgiásticos, hedonismo e violência. Aqui, Dionísio aparece em Tebas para reviver seu culto, que havia caído em má fama. Para isso, ele enlouquece as mulheres da região, que são expulsas para a floresta, onde dançam descontroladamente, vestem peles de animais, amamentam lobos e se dedicam ao espargamento (esporagmos) e ao consumo (omofagia) da carne crua de suas vítimas animais.

Eu os cantei com frenesi, os persegui de casa, até a montanha onde eles vagam, enlouquecidos de mente e obrigados a usar a libré das minhas orgias. Todas as mulheres em Tebas – mas apenas as mulheres – eu expulsei de casa, loucas… 16

No final, o próprio Rei Penteu — o governante de coração duro de Tebas, que havia negado Dionísio — torna-se uma vítima sacrificial do deus. Impelido pelo desejo de ver os ritos báquicos, ele implora para aprender sobre aqueles mistérios que “é proibido contar aos não iniciados”, que “são proibidos de dizer”, mas “valem a pena conhecer”. Mas ele é finalmente descoberto, e então dilacerado membro a membro pelas Bacantes em êxtase, e até mesmo decapitado por sua própria mãe.17

No entanto, talvez o exemplo mais notável do papel do culto báquico no imaginário popular seja encontrado no relato de Lívio no livro 39 de sua História de Roma. Em 186 a.C., relata Lívio, o senado romano se reuniu para discutir os crescentes temores sobre as cerimônias báquicas secretas que se espalhavam pela Itália, trazendo consigo não apenas imoralidade sexual, mas também atividades criminosas e assassinatos. No final, o senado exigiria a destruição de todos os santuários báquicos e o controle rigoroso de todo o culto báquico na Itália. O relato a seguir poderia ser considerado, talvez, o locus classicus para fantasias de transgressão sexual em rituais religiosos e influenciaria profundamente o imaginário ocidental pelos próximos dois mil anos.

Os prazeres da bebida e dos banquetes foram adicionados aos ritos religiosos, para atrair um número maior de seguidores. Quando o vinho inflamou seus sentimentos, e a noite e a mistura dos sexos e das diferentes idades extinguiram todo o poder de julgamento moral, todos os tipos de corrupção começaram a ser praticados, uma vez que cada pessoa tinha à mão a oportunidade de satisfazer o desejo particular ao qual era naturalmente inclinada. A corrupção não se limitava a um tipo de mal, a violação promíscua de homens e mulheres livres; o culto também era uma fonte de suprimento de falsas testemunhas, documentos e testamentos forjados e provas perjuradas, lidando também com venenos e assassinatos em massa. A violência foi ocultada porque nenhum grito de socorro pôde ser ouvido em meio aos gritos e ao bater dos tambores… na cena de devassidão e derramamento de sangue.18

De fato, as autoridades temiam que não se tratasse apenas de um culto isolado e bizarro, mas de uma força subversiva disseminada e em rápido crescimento que ameaçava a estabilidade da sociedade romana: “Devassos e devassos, devotos frenéticos, desprovidos de juízo… pelo burburinho e pela gritaria de tudo o que acontece durante a noite. Até agora, esta conspiração não tem força, mas está ganhando um vasto aumento de força à medida que seus seguidores se tornam mais numerosos com o passar dos dias.”19

Como sugere Eliade, essas narrativas fantásticas de excesso sexual e violência ritual nos dizem várias coisas. A transgressão, o excesso e a violação das proibições sociais são aqui imaginados como o meio supremo de superar a condição humana e a ordem social: “O êxtase dionisíaco significa, acima de tudo, superar a condição humana, a descoberta da libertação total, obtendo uma liberdade e espontaneidade inacessíveis aos seres humanos… Entre essas liberdades ali também figurava a libertação de proibições, regras e convenções de ordem ética e social.”20 Mas, ao mesmo tempo, revelam um medo mais profundo de subversão política, resistência e dissidência contra a ordem imperial; como observa Cohn, essas narrativas de orgias eróticas perversas “pertenciam ao estereótipo de conspiração revolucionária contra o Estado.”21

Finalmente, essas descrições das horríveis bacanais contêm muitos dos elementos que mais tarde se tornariam tropos comuns nos ataques a hereges e bruxas na Idade Média cristã. Sigilo, reuniões noturnas, pederastia, assassinatos organizados, comportamento criminoso para obter riqueza — tudo isso se tornaria motivos básicos no pesadelo recorrente da magia negra e da sexualidade ilícita pelos próximos dois mil anos.

A FESTA DO AMOR: FANTASIAS E ACUSAÇÕES SEXUAIS NA IGREJA PRIMITIVA

Disseram-lhe: “Entraremos, então, como crianças, no Reino?” Jesus lhes disse: “Quando fizerdes dos dois um… e quando fizerdes do macho e da fêmea um só, de modo que o macho não seja macho nem a fêmea seja fêmea… então entrareis no reino.”

O Evangelho de Tomé.

Ele combateria a luxúria pelo gozo da luxúria.

– Clemente de Alexandria (falecido em 215), Stromata, descrevendo a escola herética de Carpócrates

Embora tenha raízes em tradições gregas e romanas anteriores, essa narrativa de transgressão sexual alcançaria seu status duradouro como um pesadelo poderoso e recorrente com o triunfo do cristianismo. Como argumentaram Peter Brown, Elaine Pagels e outros, os primeiros cristãos se distinguiam da sociedade mediterrânea circundante, em parte, por sua austeridade, castidade e controle sexual. Isso era, ao mesmo tempo, uma forma de afirmar sua autodisciplina e superioridade sobre o que era visto como um mundo imoral e corrupto e uma forma de se desvincular das obrigações sociais que prendiam outros cidadãos na ordem cívica romana. Nas palavras de São Justino: “Nós, que antes tínhamos prazer na imoralidade, agora abraçamos somente a castidade; nós, que valorizávamos acima de tudo a aquisição de riquezas e posses, agora trazemos o que temos para a propriedade comum e compartilhamos com os necessitados.”22

Como sugere Pagels, foi em grande parte por sua disciplina incomum e controle sobre sua sexualidade que os cristãos afirmaram sua superioridade sobre o que viam como uma sociedade carnal e movida pela luxúria: “O que distinguia os cristãos de todos os outros, de acordo com contemporâneos pagãos e cristãos, era seu rigor moral, que impressionava até mesmo pagãos hostis ao movimento — a abstinência do uso dos órgãos sexuais.”23 O controle sexual era, entre outras coisas, um meio de se libertarem da ordem social e política vigente, juntamente com suas várias regras e obrigações: “a atividade sexual colocava em risco a concepção e, portanto, envolvia ambos os parceiros… nas obrigações econômicas e sociais da vida familiar. O exemplo de Jesus e seus seguidores os encorajou a tomar o caminho subversivo, afastando-se de tais obrigações — em direção à liberdade.”24

Não é de surpreender, portanto, que os primeiros cristãos fossem frequentemente percebidos como uma ameaça desviante e subversiva dentro do Império Romano, com o potencial de minar o próprio tecido doméstico e social. De fato, como suas atitudes, crenças e comportamento eram uma “negação dos valores pelos quais a sociedade greco-romana vivia”, eles podiam ser vistos como uma espécie de “conspiração política revolucionária”. 25 Assim, uma ampla variedade de narrativas fantásticas emergiu em torno dos primeiros cristãos, associando-os a todo tipo de atividade antissocial. De acordo com um relato registrado por Minúcio Félix, dizia-se que os cristãos consagravam a cabeça de um jumento e, em seguida, prestavam reverência aos genitais do sacerdote que os presidia; seus rituais de iniciação envolviam o sacrifício de uma criança e o consumo de seu sangue e cinzas queimadas; e seu ritual central era uma orgia secreta e embriagada envolvendo o sexo incestuoso mais imprudente entre homens e mulheres de todas as épocas: “Precisamente o segredo dessa religião maligna prova que todas essas coisas, ou praticamente todas, são verdadeiras.”26

A ironia de tudo isso é que a acusação de imoralidade sexual seria mais tarde apropriada e usada pelos próprios cristãos para atacar outras facções rivais na igreja primitiva. Nos dois primeiros séculos, praticamente todas as seitas cristãs seriam acusadas de promiscuidade sexual não apenas por críticos pagãos, mas também por grupos cristãos concorrentes. Como Peter Brown conclui, “por volta do ano 200, todos os grupos cristãos acusavam seus próprios rivais cristãos de práticas sexuais bizarras. Na época de Justino, um jovem em Alexandria chegou a solicitar ao Prefeito Augusto permissão para se castrar. Somente passando por essa operação drástica ele poderia esperar persuadir os pagãos de que relações sexuais indiscriminadas não eram o que os homens cristãos buscavam em suas ‘irmãs’.”27

Certamente, o alvo mais comum dessas acusações de imoralidade sexual eram grupos considerados desviantes, heterodoxos ou subversivos pela igreja dominante. Em nenhum lugar isso é mais verdadeiro do que nos ataques aos vários grupos e indivíduos conhecidos como gnósticos. Gnosticismo é, em si, um termo genérico usado para se referir a uma ampla gama de seitas que acabaram sendo rotuladas como heréticas e progressivamente extintas pela igreja cristã primitiva entre aproximadamente os séculos I e V. No entanto, apesar de sua incrível diversidade, as várias seitas dos maniqueus, valentinianos, fibionitas e ofitas, os seguidores de Simão, o Mago, e inúmeros outros, compartilham certas tendências comuns. Talvez a mais básica delas seja a ênfase na própria gnose — isto é, o conhecimento espiritual direto ou “insight” como o principal meio de salvação do mundo do sofrimento e da morte.28 De acordo com um dos primeiros e mais importantes textos gnósticos, o Evangelho de Tomé, esse conhecimento foi transmitido esotericamente, por meio de “ditos secretos” por Jesus, e dado apenas aos seus poucos discípulos escolhidos.29 Altamente sincréticos em sua imaginação cosmológica, os gnósticos desenvolveram um corpo extremamente rico de narrativas míticas, entrelaçando elementos do cristianismo, da filosofia platônica e das religiões do Oriente Próximo em elaboradas especulações sobre a origem, a estrutura e o fim do universo.

O tema recorrente em muitas dessas narrativas é que a alma humana é uma partícula ou centelha do divino que se perdeu, caiu ou ficou aprisionada no mundo material sofredor; o objetivo da prática espiritual é, portanto, libertar a alma de seus laços com a matéria, elevá-la através da hierarquia do cosmos e devolvê-la ao seu lar no reino espiritual. De acordo com o texto valentiniano O Evangelho de Filipe, o retorno da alma ao seu verdadeiro lar espiritual é descrito como uma espécie de casamento espiritual, o mistério da “câmara nupcial”. A morte, Filipe nos conta, veio ao mundo através da separação de Eva de Adão no Paraíso; portanto, Cristo veio para curar essa divisão, reunindo a alma dividida com sua contraparte espiritual e assim dar-lhe a vida eterna: “Se a mulher não se tivesse separado do homem, ela não morreria com o homem. Sua separação tornou-se o começo da morte. Por isso Cristo veio para reparar a separação que era desde o princípio e unir novamente os dois… Mas a mulher está unida ao seu marido na câmara nupcial. De fato, aqueles que se uniram na câmara nupcial não serão mais separados.”30 O resultado dessa união é a percepção espiritual da própria natureza divina. Pois, de acordo com Filipe, uma pessoa sempre se torna o que vê; Assim, “Você viu o espírito, você se tornou espírito. Você viu Cristo, você se tornou Cristo. Você viu o Pai, você se tornará o Pai… você se vê, e o que você vê você se tornará.”31

Em contraste com as igrejas cristãs tradicionais, que se tornaram cada vez mais institucionalizadas e hierárquicas no século IV, os grupos gnósticos frequentemente tinham um caráter marcadamente igualitário. Eles não apenas quebraram as hierarquias institucionais de sacerdotes sobre leigos, mas muitos também ofereceram novos papéis para as mulheres como autoridades religiosas. De acordo com muitos textos gnósticos, como O Trovão, Mente Perfeita, a própria Divindade transcende as distinções entre masculino e feminino, contendo todas as dualidades e ambos os sexos em uma unidade andrógina: “Eu sou o primeiro e o último. Eu sou o honrado e o desprezado. Eu sou a prostituta e a santa. Eu sou a esposa e a virgem. Eu sou (a mãe) e a filha… Eu sou aquela cujo casamento é grande, e eu não tomei um marido… Eu sou ímpia e eu sou aquela cujo Deus é grande.”32 E essa perspectiva “andrógina” frequentemente se estendia aos papéis de homens e mulheres humanos também. Por exemplo, o mestre gnóstico Marcião escandalizou os pais da Igreja ao nomear mulheres em igualdade de condições com os homens como sacerdotisas e bispas; Da mesma forma, os valentinianos consideravam as mulheres iguais aos homens, reverenciando-as como profetisas, curandeiras e sacerdotisas.33 De fato, uma das acusações mais comuns feitas aos gnósticos por padres da Igreja como Tertuliano era que eles não faziam distinção entre iniciados e catecúmenos, permitiam que leigos realizassem sacramentos e até mesmo davam às mulheres autoridade para pregar: “Eles entram em pé de igualdade, ouvem em pé de igualdade, rezam em pé de igualdade… E as mulheres hereges, como são descaradas! Ousam ensinar, disputar, exorcizar, prometer curas, talvez até mesmo batizar… Até mesmo os leigos são incumbidos dos deveres de um sacerdote.”34

Ao contrário das muitas acusações de imoralidade contra elas, a maioria das seitas gnósticas geralmente tinha uma atitude altamente puritana, muitas vezes extremamente pessimista, em relação ao corpo humano e à sexualidade. O corpo, para gnósticos como Mani e Valentino, era uma prisão e fonte de tristeza inevitável, e o desejo sexual era a força mais poderosa que nos prendia a este mundo corruptível, uma “chama sinistra e devoradora” que levava a alma a perecer no fogo do universo material sofredor.35 Assim, o Evangelho de Filipe adverte que as imagens “sexuais” dos ritos gnósticos não devem ser abusadas por homens impuros ou sensuais: “A câmara nupcial não é para os animais, nem para os escravos, nem para as mulheres impuras, mas para os homens livres e as virgens.”36

No entanto, o ataque mais comum, consistente e mordaz lançado contra os gnósticos pela igreja dominante foi o da imoralidade sexual. Como Peter Brown observa: “As acusações de imoralidade sexual feitas contra quase todos os mestres gnósticos deixaram claro que esta era uma questão de grande importância na igreja cristã do século II”. 37 Um dos mestres gnósticos mais infames foi Simão, o Mago, que foi considerado por seus seguidores como o “primeiro deus”, juntamente com sua companheira, Helena, o “primeiro pensamento”. Embora Simão e Helena tenham sido amplamente acusados ​​de “relações sexuais promíscuas” e até mesmo de incesto, há, de fato, pouca evidência de que eles ou outros grupos realmente se envolveram em tais práticas, “mas essas acusações são sempre feitas por pessoas de fora, sem experiência em primeira mão dos excessos sexuais que relatam”. 38 Da mesma forma, Clemente de Alexandria falou com desgosto da seita gnóstica carpocrata, cujas reuniões licenciosas envolviam “festas de amor para união”, o que para Clemente significava essencialmente gula e dissipação sexual. 39 Uma das acusações mais comuns era que os gnósticos coletavam e consumiam regularmente os fluidos sexuais masculinos e femininos, na crença de que o sêmen e o sangue menstrual são os vasos da alma e que, ao consumir essas sementes espalhadas, eles poderiam levá-los à unidade espiritual. Segundo Santo Irineu, “o poder que reside nos períodos (femininos) e no sêmen, dizem eles, é a alma (psique) que coletamos e comemos”. 40

Como Brown observa, essas narrativas fantásticas de abandono sexual e magia negra representavam uma espécie de espelho invertido do próprio cristianismo primitivo, que refletiam as ansiedades sexuais da igreja nesses anos de formação e, portanto, “nos diziam mais sobre as fantasias tradicionais mediterrâneas de um mundo virado de cabeça para baixo do que sobre as relações reais entre homens e mulheres nas comunidades cristãs”. 41

Provavelmente a mais elaborada e imaginativa dessas acusações foi a de Epifânio, futuro bispo de Salamina, que descreveu seu próprio encontro com uma seita gnóstica desviante no Egito. Depois que um grupo de mulheres lascivas tentou seduzi-lo, ele testemunhou os horríveis ritos desses gnósticos, que não apenas se empanturram de vinho e carne, mas também realizam seu próprio e horrível “rito de amor” (ágape), no qual consomem fluidos sexuais masculinos e femininos como o corpo e o sangue da Eucaristia. Atos ainda mais indizíveis se seguem se uma das mulheres for engravidada durante essas orgias:

Elas servem generosas porções de vinho e carne, mesmo sendo pobres. Depois de beberem e encherem as veias, por assim dizer, até a explosão, entregam-se à paixão. O marido se afasta da esposa e lhe diz: “Levanta-te, faz amor com teu irmão”. Os miseráveis ​​então se entregam a relações sexuais promíscuas. E, embora isso realmente me envergonhe pelas coisas vergonhosas que eles fizeram… ainda assim não hesitarei em dizer o que eles não hesitaram em fazer, de modo a despertar em meus leitores um horror arrepiante de seu comportamento escandaloso.

Após a cópula, como se o crime de sua prostituição não bastasse, eles oferecem sua vergonha ao céu. O homem e a mulher pegam o esperma do homem em suas mãos e ficam olhando para o céu. Com essa impureza em suas mãos, eles oram… oferecendo ao Pai natural do universo o que está em suas mãos, dizendo: “Nós te oferecemos este presente, o corpo de Cristo”. E então eles o comem, participando de sua própria vergonha e dizendo: “Este é o corpo de Cristo e esta é a Páscoa”…. Da mesma forma com a emissão da mulher em seu período: eles coletam o sangue menstrual que é impuro, pegam-no e comem juntos e dizem: “Eis o Sangue de Cristo…” Eles praticam o ato vergonhoso não para gerar filhos, mas por mero prazer…. Se um deles permitir que o esperma penetre a mulher e a engravide, ouça o ultraje que eles ousam realizar. No momento certo, eles extraem o embrião com os dedos e pegam o bebê abortado e o esmagam com pilão e almofariz; Depois de misturar mel, pimenta e outras especiarias e óleos perfumados para aliviar a náusea, todos se reúnem para o banquete, cada membro dessa tropa de porcos e cães, cada um pegando um pedaço da criança abortada com os dedos… E isso eles consideram a Páscoa perfeita.”42

Aqui encontramos uma fusão de todos os pesadelos sombrios e invertidos da sociedade cristã: indulgência sensual, intoxicação, sexualidade ilícita, consumo de fluidos sexuais e, finalmente, a canibalização de um feto humano. Todos esses são temas narrativos que encontraremos novamente tanto nos ataques às heresias posteriores quanto na prática ritual da magia sexual moderna.

SODOMITAS, ESPÍRITOS LIVRES E TEMPLÁRIOS: HERESIAS SEXUAIS DA BAIXA IDADE MÉDIA

Sua fornalha é o fogo da concupiscência, pois a causa de toda heresia é a luxúria, a cupidez ou o orgulho.

– Philip, o Chanceler, In psalterium davidicum CCXXX sermones (230 Sermões sobre o Saltério Davídico)

As orgias masoquistas da Idade Média, a Inquisição, os castigos e torturas, as penitências etc. dos religiosos traíram sua ficção. Eram tentativas masoquistas malsucedidas de obter gratificação sexual.

– Wilhelm Reich, Escritos Selecionados: Uma Introdução à Orgonomia.

Os medos da heresia religiosa perigosamente combinada com a licenciosidade sexual se repetiriam ao longo da história do cristianismo ocidental, desde a época dos gnósticos até a nossa geração e nossas próprias obsessões com o abuso infantil satânico e adolescentes adoradores do diabo, mas atingiriam um novo ápice particularmente intenso durante a alta e baixa Idade Média, aproximadamente do século XII ao século XV.

Assim, quando uma série de movimentos heterodoxos emergiu nos séculos XII e XIII, começando com os bogomilos, os cátaros e a Heresia do Espírito Livre,43 uma das acusações mais comuns e quase obsessivamente recorrentes contra eles foi a de abuso sexual licença. Como observa Malcolm Lambert, a acusação de imortalidade sexual “passou a ser um atributo natural dos hereges em geral”. 44 E a grande ironia dessas acusações é que, novamente, assim como os gnósticos, esses grupos tendiam, em geral, a ser tudo menos hedonistas ou sexualmente indulgentes; pelo contrário, eram geralmente altamente ascetas e até mesmo antissexuais. Os bogomilos, por exemplo, eram um grupo ascético estrito que surgiu na região dos Balcãs durante o século X ou XI. Assim como os gnósticos maniqueístas, eles tinham uma visão de mundo fortemente dualista que identificava o mundo material e o corpo com as forças das trevas, condenando o casamento e o sexo como relações impuras. 45 No entanto, os bogomilos seriam amplamente atacados como hipócritas lascivos que se envolviam em todos os tipos de vícios sexuais e, acima de tudo, na homossexualidade. 46 De fato, nossa gíria inglesa moderna para sodomita, bugger (do francês bougre), deriva do latim Bulgarus, usado para os bogomilos, que se tornaram notórios por sua suposta prática de sodomia.

Ainda mais poderosa e controversa, porém, foi a heresia intimamente relacionada dos cátaros (do grego katharos, ou “puro”), ou albigenses. Assim como os bogomilos, os cátaros eram um movimento fundamentalmente dualista que identificava o mal com o corpo material, que era, na prática, em grande parte, uma “fonte de dor e uma imposição estranha à verdadeira natureza, que é o espírito puro”. 47 Consequentemente, eles também condenavam o casamento, a relação sexual e a procriação de filhos, que apenas perpetuam a existência neste reino físico de sofrimento. Rejeitando a autoridade da Igreja Católica como uma instituição corrupta e egoísta, os cátaros rapidamente atraíram um grande número de seguidores de uma ampla gama de grupos que haviam se tornado insatisfeitos com “o mundo, com sua organização social (sociedade feudal) e com sua guia, a Igreja de Roma”. 48 De suas origens na França central, no início do século XI, os cátaros se espalharam amplamente pela Bélgica, Espanha e Itália, atraindo não apenas as classes mais pobres, mas também artesãos, burgueses e vários nobres, tornando-se uma das heresias mais poderosas do final da Idade Média.

Os cátaros logo, no entanto, enfrentariam forte oposição tanto da Igreja quanto das autoridades políticas. Já em 1022, treze cátaros foram julgados e condenados à fogueira, e as perseguições só se intensificaram à medida que seu número e influência aumentavam. Os cátaros finalmente se tornariam alvo não apenas da Inquisição, mas de uma guerra inteira, a Cruzada Albigense, que os levaria à dizimação no final do século XIII.49

Mais uma vez, a acusação mais comum dirigida aos cátaros era sua indulgência em vícios sexuais secretos e até mesmo no satanismo. O Papa Gregório IX, um dos mais ferozes na luta contra a heresia, convenceu-se de que os cátaros eram adoradores licenciosos do diabo. Em sua bula de 1233, ele descreveu em detalhes vívidos as práticas desses adoradores de Satan. Os cátaros, de acordo com esse relato, acreditavam que o Senhor havia praticado o mal ao expulsar Lúcifer e que Lúcifer finalmente retornaria à glória quando o Senhor caísse do poder. Assim, eles adoravam seu mestre sombrio em cerimônias elaboradas que envolviam um “banquete e o aparecimento de um gato preto, cujas patas traseiras eram beijadas pela maioria dos presentes”, e culminavam com o “apagamento das luzes seguido de uma orgia promíscua e, às vezes, homossexual”. 50

Talvez a principal razão para a intensa perseguição aos cátaros, bogomilos e outros grupos fosse simplesmente o fato de eles representarem um desafio vigoroso e popular à estrutura de poder existente. E, como argumenta Carol Lansing, o debate entre os cátaros e a igreja centrava-se principalmente em torno do corpo e do sexo. Pois os ensinamentos dualistas, antimateriais e antissexuais dos cátaros representavam uma ameaça radical à autoridade da igreja e à ordem política; segundo a crença cátara, os seres humanos podem se tornar perfeitos e se libertar dos laços do mundo material por sua própria escolha racional e livre-arbítrio, sem necessidade de autoridade política ou religiosa externa: “Capazes de controle racional, eles podem se purificar da matéria e novamente se tornarem perfeitos. Precisam, então, do controle de autoridades externas?” Em segundo lugar, e mais importante, porém, os cátaros também subverteram os papéis de gênero existentes, o casamento e toda a estrutura da autoridade patriarcal no lar e na sociedade: “As crenças cátaras desafiavam os papéis de gênero estabelecidos: um ensinamento comum a praticamente todos os textos cátaros é a condenação do casamento e da procriação. O papel da mulher como esposa e mãe não tem valor, visto que dar à luz e criar filhos apenas perpetua o mal da existência no corpo… Ambos os sexos podiam se tornar perfeitos, pregar e administrar o sacramento.”51

Em suma, a principal razão para a perseguição a tais grupos era que eles estavam tentando — não muito diferente dos primeiros cristãos sob o Império Romano — se libertar da estrutura social existente por meio de uma política sexual alternativa. No entanto, ironicamente, como eram refletidos pela lente da ordem religiosa e política dominante, a acusação contra eles era precisamente a de libertação sexual no sentido de relações sexuais ilícitas e imorais.

No entanto, talvez o grupo mais infame, acusado dos pecados combinados de adoração ao diabo, magia negra e licenciosidade, tenha sido a Ordem dos Cavaleiros Templários. Como veremos no capítulo 3, muitas ordens mágicas importantes dos séculos XIX e XX, como a Ordo Templi Orientis e os seguidores de Aleister Crowley, alegariam continuar a tradição dos Templários. E muitos autores populares hoje identificam os Templários como a fonte original da própria magia sexual ocidental. Assim, o popular autor de magia sexual Donald Michael Kraig especula que os Templários adaptaram seus segredos sexuais dos sufis do mundo árabe, que por sua vez os tomaram emprestado das tradições tântricas da Índia e os transmitiram aos alquimistas medievais e, finalmente, aos magos modernos.52

A maior parte dessa associação dos Templários com a magia sexual e o satanismo, no entanto, é provavelmente imaginária e muito provavelmente inspirada mais por motivações políticas do que por evidências factuais. Fundada em 1118 por dois cavaleiros franceses, a Ordem do Templo foi concebida como uma fraternidade monástica militar com a dupla função de defender o recém-estabelecido reino cruzado de Jerusalém e proteger os peregrinos pobres na Terra Santa. Combinando fervor religioso com proezas marciais, a ordem logo se tornou enormemente popular e foi inundada com favores espirituais e materiais de autoridades eclesiásticas e leigas. De fato, rapidamente se tornaria uma das ordens mais poderosas e ricas do final da Idade Média, recebendo recompensas temporais dos governantes de praticamente todos os estados europeus.

No início do século XIII, no entanto, os Templários passaram a ser cada vez mais suspeitos pela Igreja e, eventualmente, também pelo rei francês. Em 1238, o Papa Gregório IX suspeitou que os Templários fossem hereges e, em 1272, um concílio da Igreja declarou que a ordem precisava de reforma. Finalmente, em 1307, o Rei Filipe de Bel iniciou uma perseguição à ordem, alegando que ela estava infectada com sodomia, bestialidade e heresia. De 1307 a 1314, a ordem foi interrogada pela Inquisição e finalmente abolida pelo próprio Papa Clemente. A razão para a intensa suspeita e perseguição à ordem é provavelmente dupla. Por um lado, os cavaleiros cercaram sua ordem com um grau significativo de sigilo. Em meados do século XIII, eles impuseram regulamentos rígidos “proibindo os irmãos de tornar públicos os procedimentos do capítulo da ordem ou de permitir que estranhos vissem cópias da regra”. 53 Em particular, a cerimônia de recepção na ordem era um evento altamente esotérico, que despertava toda a variedade de suspeitas sobre que tipo de rituais obscuros ou atos ilícitos poderiam estar ocorrendo por trás dos véus do sigilo. Por outro lado, provavelmente a razão mais importante para a perseguição à ordem era simplesmente sua crescente riqueza e poder; Isentos de qualquer tipo de imposto e com privilégios exorbitantes na Terra Santa, os Templários logo despertaram a inveja e, por fim, a antipatia de facções religiosas e seculares.

As acusações contra a ordem pela Inquisição guardam uma semelhança impressionante com as que já encontramos no caso dos gnósticos e outros hereges acusados: incluíam “coisas estranhas e inéditas, terríveis de se ouvir… uma obra abominável, uma desgraça detestável, algo quase desumano”, abrangendo desde blasfêmia contra Cristo e a Igreja, relações homossexuais, até a adoração de um ídolo de um demônio chamado Bafomé. As acusações incluíam o seguinte:

Os Templários negavam a Cristo quando foram recebidos na Ordem… Cuspiam na Cruz e a profanavam.

Trocavam beijos obscenos em sua recepção na Ordem.

… Eles eram obrigados a jurar que não deixariam a Ordem, as recepções eram realizadas em segredo e a sodomia era incentivada…

Eles adoravam um gato.

Não acreditavam na Missa ou em outros sacramentos da Igreja. Seus padres não pronunciavam as palavras de consagração na Missa…

Eles praticavam a sodomia.

Veneravam um ídolo, uma cabeça masculina barbada, e diziam que a cabeça tinha grandes poderes.54

Já no início de 1308, 134 dos 138 Templários presos em Paris haviam confessado algumas ou todas essas acusações, com o Grão-Mestre James de Molay liderando o processo. Finalmente, em 1312, o Papa Clemente leu a bula, Vox in excelso, que aboliu a Ordem do Templo. Não só os Templários se envolviam em rituais “secretos e clandestinos”, mas também era incontestavelmente sabido que “muitas coisas horríveis” tinham sido feitas “por muitos irmãos desta Ordem que caíram no pecado da apostasia perversa contra o próprio Senhor Jesus Cristo, no crime da idolatria detestável, no ultraje execrável dos sodomitas”.55

Ironicamente, embora a maioria dessas acusações de sodomia e satanismo contra os cátaros, bogomilos e templários fossem provavelmente imaginárias e possivelmente também politicamente motivadas, elas reapareceriam em uma nova forma impressionante no final do século XIX e início do século XX, com a fundação de uma nova ordem templária — a Ordo Templi Orientis (OTO), entre cujos membros estava a Grande Besta, Aleister Crowley. E a OTO, de fato, tornaria a relação homossexual uma “Missa Gnóstica” em grande escala e, no caso de Crowley, a adoração a Baphomet, partes essenciais de sua prática esotérica (veja abaixo, capítulo 4).

O SABÁ DAS BRUXAS E OS AMANTES DEMONÍACOS

Toda bruxaria provém da luxúria carnal, que é insaciável nas mulheres… Portanto, para satisfazer suas luxúrias, eles se associam até mesmo com demônios… Não é de se admirar que haja mais mulheres do que homens infectados com a heresia da bruxaria.

– Heinrich Kramer e James Sprenger, Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas)

É difícil, senão impossível, distinguir entre os elementos reais e imaginários nos testemunhos das bruxas em relação às suas “orgias” secretas.

– Mircea Eliade, Ocultismo, Bruxaria e Modas Culturais.

Certamente o exemplo mais infame, e ainda hoje mais amplamente debatido e discutido, da associação entre magia e sexualidade reside nos julgamentos de bruxas do final da Idade Média e início da Europa moderna. Entre 1450 e 1750, o antigo pesadelo da magia negra e da licenciosidade sexual irrompeu em sua forma mais concreta e horrível, com milhares de pessoas, a maioria mulheres, sendo mortas por sua suposta prática de magia sexual.

Uma ampla gama de estudiosos apresentou teorias sobre as causas históricas, religiosas e sociais específicas das perseguições por bruxaria. De acordo com alguns estudiosos mais românticos, como Margaret Murray, havia de fato uma religião antiga, pré-cristã, centrada em deusas e matriarcal, que mais tarde foi demonizada pela igreja e rotulada como “bruxaria”. 56 De acordo com outros, como Norman Cohn, a caça às bruxas era, na verdade, uma espécie de bode expiatório imaginário e um “retorno do reprimido”, ou seja, a projeção dos próprios conflitos violentos e sexuais da Europa em certos grupos marginais; para outros, era em grande parte resultado da mudança de papéis de gênero, à medida que a medicina, amplamente dominada por homens, ascendia ao poder e a obstetrícia e a cura popular, amplamente dominadas por mulheres, eram cada vez mais rotuladas como bárbaras, incivilizadas, pagãs e até demoníacas. 57 E outros argumentaram que era resultado da própria suspeita de longa data da igreja em relação ao sexo em todas as suas formas, o que, por sua vez, levava à condenação de qualquer forma de comportamento orgiástico ou sexual-mágico. Como sugere Eliade, “Devido à demonização judaico-cristã da sexualidade, qualquer tipo de orgia era considerada satânica e, consequentemente, um sacrilégio, merecendo a mais severa punição”. 58

Mas pelo menos duas coisas parecem bastante claras: (1) a esmagadora maioria das vítimas eram mulheres; e (2) havia uma associação generalizada de magia negra com sexualidade ilícita, geralmente na forma de rituais orgiásticos ou relações sexuais com demônios. Como observa D. P. Walker, havia uma aparente obsessão por sexo entre os caçadores de bruxas, e “os tratados sobre bruxaria tornaram-se quase pornográficos”. 59 Uma narrativa notavelmente consistente e provavelmente em grande parte imaginária evoluiu a respeito das bruxas e suas orgias noturnas, que guarda uma semelhança impressionante com as acusações feitas às Bacantes do mundo greco-romano e aos gnósticos do cristianismo primitivo:

Bruxos e bruxas se encontravam à noite, geralmente em locais solitários, em campos ou montanhas… Depois de ungir seus corpos, voaram, chegando montados em vassouras… Aqueles que vinham pela primeira vez tinham que renunciar à fé cristã, profanar o sacramento e prestar homenagem ao diabo… Seguiam-se banquetes, danças e orgias sexuais. Antes de retornarem para casa, as bruxas e os bruxos recebiam unguentos malignos feitos com gordura de crianças e outros ingredientes.60

Acima de tudo, o excesso sexual era uma das acusações mais comuns e contundentes contra as bruxas acusadas. De acordo com o clássico manual do caçador de bruxas, o Malleus Maleficarum (1486), o pecado chegou aos seres humanos pela primeira vez por meio da relação sexual e, portanto, é a principal via pela qual o diabo pode operar: “uma vez que a primeira corrupção do pecado, pela qual o homem se tornou escravo do diabo, chegou até nós através do ato da geração, portanto, maior poder é concedido por Deus ao diabo neste ato do que em todos os outros”. E as mulheres, sendo mais propensas por sua natureza à “infidelidade, ambição e luxúria”, são inerentemente “mais inclinadas à bruxaria do que outras”. 61 Uma descrição particularmente vívida do Sabá das bruxas é dada em um texto do início do século XVII, o Compendium Maleficarum (Compêndio de Bruxas), de Francesco Maria Guazzo: aqui, as bruxas primeiro repudiam seu batismo e assumem um novo nome do Diabo; Elas entregam suas roupas, sangue e filhos ao Diabo e imploram que ele inscreva seus nomes no livro da morte; e juram estrangular uma criança em sua homenagem uma ou duas vezes por mês. Finalmente, as bruxas dançam e festejam em homenagem ao Diabo, e então “da maneira mais repugnante, copulam com seus amantes demônios”. 62

Como Walter Stephens argumentou recentemente em Demon Lovers (Amantes do Demônio), essa obsessão com a sexualidade demoníaca era resultado da crescente crise de fé no início da Europa moderna. Essa crise trouxe consigo um desejo crescente de experimentar o sobrenatural — mesmo que uma forma demoníaca do sobrenatural — da maneira mais encarnada e física, como meio de combater o crescente ceticismo sobre a existência do reino espiritual em um mundo medieval tardio lentamente desencantado e mais racionalizado. Com sua atenção obsessiva à transgressão sexual e às relações sexuais com demônios, os caçadores de bruxas e teólogos puderam reconfirmar sua própria fé no mundo invisível: “A cópula oferecia perspectivas valiosas sobre a vida dos demônios, sua corporalidade e a possibilidade de interagir significativamente com eles… A cópula demoníaca servia para antropomorfizar os demônios. Evidências sabáticas demonstravam que a interação humana real era possível entre bruxas e demônios.”63 Assim, parte da literatura sobre bruxaria é incrivelmente gráfica em sua descrição da sexualidade dos demônios e da natureza da relação sexual entre demônios e bruxas. Em Strix, sive de ludificatione daemonum (Strix, ou sobre a zombaria dos demônios, 1523), de Gianfrancesco Pico della Mirandola, encontramos um diálogo notavelmente franco entre uma bruxa (strix) e seu questionador, Apístio,

Apístio: Sabemos que os demônios não têm ossos nem carne… Como eles podem copular?

A Strix: As partes que vestem são semelhantes a carne e ossos, mas maiores do que as de qualquer mortal.64

Explica-se então por que as bruxas são tão viciadas no ato de relações sexuais com demônios, que aparentemente têm a capacidade de satisfazer seus desejos de maneiras que nenhum mortal jamais poderia:

Apístio: Mas ainda não consigo entender o significado de toda essa cópula… Nem meu entendimento pode captar a razão de tanto prazer sensual [voluptas].

Dicaste: As bruxas afirmam ser tão dominadas por ele que juram não haver prazer igual na Terra… Primeiro, porque esses espíritos rebeldes exibem uma aparência muito agradável. Depois, porque seus membros viris são de um tamanho incomum… Com seus membros, eles preenchem as partes mais secretas das bruxas… E provavelmente podem estimular algo profundo dentro das bruxas, por meio do qual essas mulheres têm maior prazer do que com os homens.65

Embora essas narrativas provavelmente tenham pouca base na realidade, são exemplos marcantes de três temas recorrentes que vimos ao longo deste capítulo: (1) a associação notavelmente persistente entre magia negra e sexualidade; (2) a crença generalizada de que o sexo mágico não é apenas diferente, mas inimaginavelmente melhor do que o sexo comum; e (3) a associação de sexo e magia com grupos e indivíduos marginais ou excluídos (mulheres, hereges, aqueles que se opõem ou buscam a libertação da ordem social vigente, etc.). Esses são temas que permeiam a maior parte da literatura sobre magia sexual desde o século XIX até a nossa geração. Como veremos no capítulo 7, eles também formam a base para o pesadelo cristão mais elaborado de todos: o pesadelo da Missa Negra, que começou a aparecer no início da Europa moderna e foi reinventado no final do século XX por novos movimentos como a Igreja de Satan.

AS RAÍZES HISTÓRICAS DA MAGIA SEXUAL NO OCIDENTE: ALQUIMIA, MAGIA E CABALA

E se você deseja ver a realidade deste mistério, então você deveria ver a maravilhosa representação da relação sexual que ocorre entre homem e mulher. – Versão copta do hermético Asclépio.

Se reconhecermos o fato de que a maioria das associações entre sexualidade e magia no Ocidente eram fantasias altamente imaginativas, até mesmo paranoicas, e que eram frequentemente guiadas por motivações políticas, isso significa que não há uma base histórica real para a prática da magia sexual moderna? A resposta simples é: não, claro que não: existem muitas técnicas e práticas, da Grécia Antiga à Cabala medieval, que claramente formaram a base da magia sexual moderna. A resposta mais longa e complexa, no entanto, é que, embora existam de fato muitos antecedentes e correntes contribuintes, eles não explicam inteiramente a notável nova onda de magia sexual na era moderna.

É verdade que as imagens sexuais têm sido usadas há muito tempo para expressar a natureza inefável da experiência mística ou da visão espiritual. Já vimos isso em toda a literatura gnóstica primitiva, no mistério da câmara nupcial e na busca valentiniana pela união divina: Para Valentino, em seu anseio por superar a “alteridade”, “a transcendência de todas as divisões, mesmo de uma divisão aparentemente tão irremovível como a entre homem e mulher, era o sinal mais seguro de que a redenção oferecida por Cristo havia chegado ao crente”. 66 Um dos exemplos mais explícitos desse uso de imagens pode ser encontrado na versão copta do texto hermético Asclépio, que descreve a relação sexual como uma “representação maravilhosa” desse mistério espiritual secreto:

Pois quando o sêmen atinge seu clímax, ele salta para fora. Nesse momento, a fêmea recebe a força do macho; o macho, por sua vez, recebe a força da fêmea, enquanto o sêmen faz isso. Portanto, o mistério da relação sexual é realizado em segredo, para que os dois sexos não se desonrem diante de muitos que não vivenciam essa realidade… Se acontece na presença de pessoas que não compreendem a realidade, é risível e inacreditável. E, além disso, são mistérios sagrados, tanto de palavras quanto de atos, porque não só não são ouvidos, como também não são vistos.67

No entanto, apesar do uso muito comum de simbolismo sexual em textos gnósticos, há poucas evidências (além das acusações da igreja primitiva) de que os gnósticos se envolvessem em qualquer prática real de rituais sexuais, e certamente nada que se assemelhe à magia sexual moderna.68

Provavelmente, o lugar mais óbvio para procurar antecedentes históricos da magia sexual moderna é na ampla gama de literatura sobre “magia do amor” que circulou por todo o mundo grego antigo. Como Christopher Faraone demonstrou, a magia do amor era onipresente em todo o mundo antigo, desde a época de Homero até a hagiografia cristã primitiva.69 E por magia do amor, ele quer dizer duas técnicas principais: aquelas usadas para induzir filia e afeições semelhantes em homens, em oposição aos rituais que os homens geralmente empregam para lançar eros nas mulheres. Enquanto a magia filia era tipicamente usada dentro de casa ou em um relacionamento existente para aumentar a afeição e a estima de um homem por sua parceira, os encantamentos para eros eram geralmente usados ​​para iniciar um novo relacionamento, forçando a vítima a se entregar aos braços da pessoa que realiza o feitiço: “o feitiço é projetado explicitamente para despertar o desejo sexual da vítima”. 70 Os feitiços para induzir filia normalmente envolvem técnicas como encantamentos sobre amuletos, cordões com nós, anéis, poções do amor ou unguentos, enquanto os feitiços para induzir eros envolvem medidas mais extremas, como “encantamentos sobre imagens, animais torturados, materiais queimados ou maçãs”, com o objetivo de enlouquecer as vítimas e “encorajá-las a deixar suas casas e procurar o praticante”. 71

Técnicas semelhantes de magia do amor sobreviveriam ao longo da Idade Média cristã em uma ampla gama de tradições mágicas europeias, bizantinas, coptas e outras. Se examinarmos a história da magia ocidental, não faltam feitiços eróticos para atrair mulheres, feitiços para engravidar mulheres, “feitiços para sexo e negócios” e assim por diante.72 No entanto, embora tudo isso forneça uma base interessante para a conexão entre amor, sexo e magia na tradição ocidental, não fornece realmente a base para a magia sexual como a vemos nos séculos XIX e XX. Pois, nesses textos, a magia está sendo usada para gerar desejo sexual; os magos modernos, no entanto, inverteriam a operação, isto é, usando o desejo sexual e o orgasmo para produzir efeitos mágicos.

QUANDO OS DOIS SE ENCONTRAM COMO UM: SEXUALIDADE SAGRADA NA CABALA JUDAICA

Quando um homem se apega à sua companheira e seu desejo é recebê-la, ele adora diante do Rei sagrado e desperta outra união, pois o desejo do Santo, bendito seja Ele, é se apegar à comunidade de Israel.

Zohar III, 37b

Certamente, uma das forças mais influentes na ascensão da magia sexual moderna foi o complexo conjunto de textos e tradições que compõem a Cabala judaica. Uma rica fusão de especulação metafísica e imaginação mítica, a Cabala surgiu do Gnosticismo, do Neoplatonismo, do misticismo judaico primitivo e de vários outros elementos que começaram a se fundir na Idade Média e floresceram plenamente entre os séculos XIII e XVII. Assim como a Gnose, a Cabala é uma tradição altamente esotérica, que afirma revelar os níveis internos e mais profundos de significado ocultos na Torá e transmitidos em uma cadeia rigorosamente guardada ao longo dos séculos.73

O simbolismo erótico está presente em toda a literatura cabalística, sendo usado de várias maneiras como meio para descrever a relação entre a Torá e seu amante, o cabalista,74 e como meio para descrever as inter-relações entre diferentes aspectos do próprio reino divino. De acordo com a maioria das tradições cabalísticas, existe uma série de dez emanações divinas, ou potências (sefirot), que irradiam do abismo divino, ou Divindade, em uma sucessão de pares masculino-feminino. Frequentemente, as sefirot são imaginadas na forma de um corpo divino (masculino), ou anthropos, completo com seu próprio pênis.75 Grande parte da meditação cabalística e da prática espiritual visa reunir os aspectos masculino e feminino do corpo divino que se manifestam como as sefirot. E porque os seres humanos aqui na Terra são um espelho do reino divino e das sefirot masculino-feminino acima, a relação sexual física entre marido e mulher também pode servir como uma técnica espiritual para reunir as sefirot e, assim, auxiliar na unificação dos aspectos masculino e feminino de Deus. Em última análise, nas palavras do texto clássico do século XIII, o Zohar, essa união entre homem e mulher simboliza, por sua vez, a união de Deus com sua noiva, a própria comunidade de Israel:

Quando há homem e mulher, e ele é santificado na santidade suprema… quando um homem está na união de homem e mulher, e pretende ser santificado… então ele é completo e é chamado de um sem qualquer mancha. Portanto, um homem deve alegrar sua esposa nesse momento, convidando-a a ser uma só vontade com ele… Quando os dois são encontrados como um, então eles são um em alma e corpo.76

Esses textos deixam claro, no entanto, que essa união é tudo menos uma questão de licenciosidade sexual ou hedonismo. Pelo contrário, essa união é imaginada como a união do Rei divino com a Shekinah e, ​​como tal, marido e mulher devem tratá-la com o mais profundo respeito, preparando-se com estrito celibato durante seis dias antes do Shabat:

Os estudantes da Torá… tornam-se “eunucos” durante os seis dias da semana em nome da Torá, e nas noites de Shabat realizam sua união conjugal, porque apreendem o mistério sobrenatural do momento certo em que a Matrona Shekinah se une ao Rei.77

De acordo com outros cabalistas, no momento da união sexual, a mente do marido é de fato elevada ao reino sobrenatural e atrai a luz divina e a própria Shekinah. Essas forças espirituais descem para a gota de sêmen, infundindo espírito na semente. De acordo com um dos textos cabalísticos antigos mais influentes, Iggeret ha-Kodesh,

Quando o marido copula com sua esposa e seu pensamento se une às entidades celestiais, esse mesmo pensamento atrai a luz celeste para baixo, e a luz permanece sobre a gota de sêmen para a qual ele direciona sua intenção e pensamento… Essa mesma gota está permanentemente ligada à luz brilhante… Como o pensamento está nela, a gota está ligada às entidades celestiais e atrai a luz brilhante para baixo.78

Apesar de seu objetivo maior, a unio mystica (união mística), nenhuma dessas práticas sexuais cabalísticas parece envolver qualquer um dos elementos explicitamente mágico-sexuais que começam a aparecer no esoterismo ocidental do século XIX; isto é, elas não empregam explicitamente o orgasmo como um meio de concentrar a vontade e produzir efeitos mágicos no mundo físico. Mais importante ainda, enquanto a maioria das formas modernas de magia sexual giram em torno de um ideal de liberdade radical e libertação social, a tradição cabalística é, em sua maior parte, altamente conservadora, até mesmo “hipernomiana”. No entanto, as imagens e certos aspectos da metafísica da Cabala seriam de fato uma influência central (embora muitas vezes de forma um tanto confusa) em toda a magia sexual moderna.

Talvez as práticas sexuais mais controversas a emergir da tradição cabalística posterior tenham surgido nos séculos XVII e XVIII, na esteira do grande “messias judeu”, Sabbatai Zevi (1626-1676). O mais infame desses movimentos foi o de Jacob Frank (nascido Yakov ben Judah Leib Frankovich, 1726-1791), que se autoproclamou um novo messias e liderou um poderoso movimento espiritual na Polônia, Áustria e Alemanha. Enquanto a maioria das formas tradicionais de Cabala são bastante conservadoras em relação à lei judaica, os frankistas seriam acusados ​​de todos os tipos de transgressões, particularmente de tabus sexuais. Hoje, há algum debate sobre quanta transgressão ou licenciosidade sexual realmente ocorreram entre os frankistas. Alguns estudiosos, como Gershom Scholem, descreveram Frank como “um dos fenômenos mais assustadores de toda a história judaica: um líder religioso que… era, em todas as suas ações, um indivíduo verdadeiramente corrupto e degenerado”. 79 Como Scholem sugere, a religião organizada era para Frank “apenas um manto a ser vestido e jogado fora novamente no caminho para o ‘conhecimento sagrado’… onde todos os valores tradicionais são destruídos”, enquanto a “religião niilista” era o meio para inaugurar um novo judaísmo messiânico através das “dores de parto de uma convulsão universal”. 80 Nas palavras de Frank,

Cristo… disse que veio redimir o mundo das mãos do diabo, mas eu vim redimi-lo de todas as leis e costumes que já existiram. É minha tarefa aniquilar tudo isso para que o Bom Deus possa se revelar. 81

Estudiosos mais recentes, como Harris Lenowitz, no entanto, argumentam que o elemento antinomiano em Frank e outros Messias judeus era mais frequentemente uma questão de rumor do que de realidade. Os próprios preconceitos de Scholem podem tê-lo levado (e a muitos outros) a destacar a natureza imoral, violenta e sexual de seus ensinamentos.82 Mas, quer as transgressões sexuais de Frank fossem um fato histórico ou uma fantasia popular, ele persistiria no imaginário ocultista moderno como uma figura que defendia a liberdade absoluta e a libertação das leis do mundo, incluindo suas leis sexuais.

MAGIA ERÓTICA E MANIPULAÇÃO ESPIRITUAL NO RENASCIMENTO

Para todos aqueles que se dedicam à filosofia da magia, é plenamente evidente que o vínculo mais elevado, o mais importante e o mais geral, pertence a Eros: e é por isso que os platônicos chamavam o amor de Grande Demônio, o daemon magnus.

– Giordano Bruno, Teses da Magia

Talvez os primeiros predecessores mais claros da magia sexual moderna tenham surgido durante o Renascimento, particularmente nas obras de filósofos e magistas italianos como Marsilio Ficino (1433-1499) e Giordano Bruno (1548-1600). Baseando-se em uma ampla gama de tradições filosóficas, teológicas e mágicas, e particularmente no neoplatonismo e no hermetismo, Ficino fundou a Academia Platônica em Florença por volta de 1450. Além de traduzir vários textos antigos importantes, como o Corpus Hermeticum e uma série de textos neoplatônicos sobre demonologia, Ficino dedicou grande atenção à teoria da magia, tanto em suas formas espirituais quanto demoníacas. Segundo Ficino, as forças da magia e do eros estão inextricavelmente entrelaçadas; pois tanto a magia quanto o eros funcionam pelo princípio da atração, a aproximação de coisas semelhantes, que é a própria força que mantém o próprio universo unido:

Todo o poder da Magia se baseia em Eros. A maneira como a Magia funciona é unir as coisas por meio de sua similaridade inerente… Em nosso corpo, o cérebro, os pulmões, o coração, o fígado e outros órgãos interagem, favorecem-se mutuamente, intercomunicam-se e sentem dor recíproca. Dessa relação nasce Eros, que é comum a todos eles; deste Eros nasce a sua mútua reaproximação, onde reside a verdadeira Magia.83

Tanto o eros quanto a magia operam através do mesmo pneuma universal, ou alma do mundo, que flui por todas as partes do universo, assim como a alma humana flui por todas as partes do corpo físico. Eros é o poder de atração que mantém todas as coisas unidas, desde as estrelas no céu até as folhas de grama na terra, e a magia é a arte de compreender e manipular as relações de atração entre as partes do mundo, ligando objetos desejados ao mago. A magia pode operar através de uma variedade de meios, desde música e poesia até obras de arte. Por exemplo, uma das técnicas mais comuns é o uso de talismãs inscritos com imagens, geralmente das estrelas (por exemplo, uma imagem da deusa Vênus para Vênus, ou de Apolo para o Sol). O talismã é então capaz de atrair a vida de estrelas específicas, “capturando correntes astrais que jorram do alto e usando-as para a vida e a saúde”. 84 Em última análise, o mago é capaz de conhecer e controlar as várias forças atrativas que fluem pelo cosmos, assim como um amante amarra e cria uma “teia” mágica em torno de seu amor: “ambos, o amante e o mago, fazem a mesma coisa: lançam suas ‘redes’ para capturar certos objetos, para atraí-los e atraí-los para si”. 85

Se Ficino formulou pela primeira vez a equação “eros = magia”, então o homem que levaria essa equação ao seu próximo nível lógico e mais prático foi o controverso filósofo, mestre da arte da memória e defensor da teoria copernicana, Giordano Bruno. Com base nessa crença na natureza erótica da magia, Bruno sugere que a magia funciona principalmente por meio do poder da fantasia e, secundariamente, por meio de sons e imagens que passam pelos sentidos; estes últimos, então, imprimem certos estados mentais de atração ou aversão na imaginação. Uma vez que sua imaginação tenha sido influenciada dessa forma, um indivíduo pode ser manipulado pelo mago, a quem ele agora está preso por “correntes” (vincula). O mago pode, assim, prender a pessoa com uma variedade de correntes, despertando nela “esperança, compaixão, medo, amor, ódio, indignação, raiva, alegria, paciência, desdém pela vida e pela morte, pela fortuna”. Mas eros é para Bruno o “laço dos laços” (vinculum vinculorum), a base de toda a magia e da manipulação de outros seres: “todos os laços se reduzem ao laço do amor, dependem do laço do amor ou se baseiam no laço do amor… O amor é a base de todos os sentimentos.”86 Como observa D. P. Walker, o sistema de magia erótica de Bruno parece ter tido grandes ambições, como um método complexo para o “acorrentamento” e o controle de seres em larga escala: “Bruno… fez uma tentativa notável de desenvolver uma técnica explicitamente baseada na atração sexual para o controle emocional global.”87

Essa associação entre eros e magia é o fundamento oculto da maioria das práticas mágicas desde o século XIX. E, como veremos nos capítulos seguintes, muitos magos posteriores levariam esse objetivo de “controle emocional global” a extremos ainda mais ambiciosos.

A ALQUIMIA DA IMAGINAÇÃO: O CASAMENTO MÍSTICO NA ALQUIMIA RENASCENTISTA

Quando a semente do homem abraça a semente da mulher, este é o primeiro sinal e a chave de toda esta obra e arte.

– Paracelso, Concernente aos Espíritos dos Planetas.

Após a magia renascentista e a Cabala, provavelmente a fonte mais importante para a “ciência” moderna da magia sexual foi a tradição da alquimia. As origens da alquimia ocidental podem provavelmente ser rastreadas até Alexandria, no século III a.C. Após passar para o mundo greco-romano, a arte alquímica logo se misturou a uma variedade de tradições místicas neoplatônicas, gnósticas e herméticas. Com o triunfo do cristianismo e a queda do Império Romano, as artes alquímicas foram perdidas para o mundo latino por um milênio, sobrevivendo apenas entre os árabes. A arte só foi reintroduzida no Ocidente em 1182, com o renascimento do aprendizado do grego na Europa e a primeira tradução latina de um texto árabe por Roberto de Chester.88

Na época do Renascimento, a alquimia havia evoluído para uma tradição rica e altamente simbólica e, de fato, uma arte espiritual voltada não apenas para a transformação de substâncias físicas, mas também para a transformação espiritual e a união divina. Entre as figuras mais importantes dessa “alquimia espiritual” estava o cirurgião, químico e pioneiro da medicina moderna, Teofrasto Bombastus von Hohenheim (1493-1541), mais conhecido como Paracelso (“maior que Celso”). Baseando-se tanto nas ideias mágicas eróticas do neoplatonismo renascentista quanto nos novos conhecimentos científicos e médicos do século XVI, Paracelso via na alquimia não apenas um processo físico voltado para a transformação de metais básicos (como chumbo em ouro) ou um processo químico voltado para a obtenção do elixir da vida (elixir vitale), mas também um processo místico que ocorria dentro do próprio mago.89

A importância de Paracelso para a magia sexual moderna é pelo menos dupla. A primeira é seu trabalho sobre alquimia, que não apenas revolucionou a arte, mas também a articulou em sua forma mais influente. Como a maioria dos alquimistas do final da Idade Média e do Renascimento, Paracelso descreve a arte usando imagens explicitamente sexuais. De fato, Júlio Evola descreveu o próprio trabalho alquímico como uma espécie de “magia sexual”. 90 Segundo Paracelso, a Pedra Filosofal é criada pela união e transformação do enxofre e do sal, aqui comparada à união do Sol e da Lua, os princípios cósmicos masculino e feminino. No entanto, para serem verdadeiramente unidos, eles precisam ser unidos a uma terceira coisa — a saber, Mercúrio, que os une como o espírito completa a alma e o corpo. Este processo também é comparado à união do homem e da mulher, que são unidos pelo esperma para gerar um filho:

Há também duas matérias da Pedra, Sol e Lua, formadas juntas em um casamento adequado… Como vemos, o homem ou a mulher, sem a semente de ambos, não podem gerar, da mesma forma que nosso homem, Sol, e sua esposa, Lua, não podem conceber… sem a semente e o esperma de ambos. Daí os filósofos concluírem que uma terceira coisa era necessária, a saber, a semente animada de ambos… Tal esperma é Mercúrio, que, pela conjunção de ambos os corpos, Sol e Lua, recebe sua natureza em si mesmo em união.

O resultado desse casamento alquímico é nada menos que o nascimento de um novo ser espiritual, o Adão hermafrodita, que contém seu próprio princípio feminino dentro de si, assim como Adão originalmente continha Eva dentro de si no Paraíso:

Por isso, os filósofos disseram que esse mesmo Mercúrio é composto de corpo, espírito e alma… Eles até o chamaram de seu Adão, que carrega sua própria Eva invisível oculta em seu corpo, a partir daquele momento em que foram unidos pelo poder do Deus Supremo… A matéria da Pedra Filosofal nada mais é do que um Mercúrio ígneo e perfeito extraído pela Natureza e pela Arte; esse é o… verdadeiro Adão hermafrodita.91

A segunda e não menos importante influência de Paracelso na magia moderna residia em sua crença central no poder da Imaginação (imaginatio). Como Ficino e Bruno, Paracelso acreditava que a magia funcionava principalmente por meio da imaginação, que não é mera ilusão ou fantasia (phantasia), mas uma força espiritual com efeitos reais no mundo físico. “O homem… é completamente uma estrela. Assim como ele imagina ser, assim ele é, e ele é também aquilo que imagina. Se ele imagina fogo, resulta fogo; se guerra, segue-se guerra… a imaginação é em si mesma um sol completo.”92 De fato, Paracelso descreve a imaginação como uma espécie de “poder seminal”, que imprime as “sementes” da vontade do mago em objetos externos: “Deus plantou a semente em toda a sua realidade e especificidade profundamente na imaginação do homem… Se um homem tem a vontade, o desejo surge em sua imaginação e o desejo gera a semente.” A imaginação está, novamente, intimamente ligada ao desejo sexual; Assim, uma mulher pode informar profundamente a natureza de um feto, gerando filhos “semelhantes à sua imaginação”. 93 Por outro lado, uma mulher excessivamente luxuriosa ou impura pode projetar coisas perigosas a partir de sua imaginação, como íncubos, súcubos e até mesmo a peste. 94 É por meio de seu poder de imaginação, além disso, que o alquimista transforma o ato físico de transmutar minerais em um ato espiritual, por meio do qual ele próprio é transformado, purificado e renascido como um ser espiritual: “imaginatio é o poder ativo… do homem superior interior. … Durante este trabalho, o homem é ‘elevado em sua mente’… Enquanto o artífice aquece a substância química na fornalha, ele próprio está moralmente passando pelo mesmo tormento e purificação ardentes”. 95

Esse modelo de alquimia como uma arte espiritual, mas também altamente “erótica”, e essa visão da imaginação como força de poder mágico ativo teriam ambos uma influência formativa na maioria das formas modernas de magia sexual. De fato, práticas como a magia sexualis de Randolph combinariam efetivamente essas duas ideias em uma nova forma de “alquimia afetiva”.

AMOR SEXUAL E CONJUGAL NA OBRA DE EMANUEL SWEDENBORG E WILLIAM BLAKE

O amor do sexo está com o homem natural; mas o amor conjugal com o espiritual.

– Emanuel Swedenborg, As Delícias da Sabedoria Pertinentes ao Amor Conjugal

Ó santa geração! Imagem da regeneração!… Berço do Cordeiro de Deus incompreensível!

– William Blake, Jerusalém

Nos séculos XVII e XVIII, essas diversas correntes de magia erótica, Cabala e alquimia começaram a fluir juntas e se misturar em meio ao Iluminismo europeu. Um dos mais importantes precursores da magia sexual moderna — e indiscutivelmente uma das figuras mais influentes na ascensão do espiritualismo e dos novos movimentos religiosos — foi o filósofo, político, cientista e místico sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772). Indivíduo verdadeiramente notável, Swedenborg escreveu extensivamente sobre ciência, matemática e geologia, mesmo enquanto atuava ativamente como político e assessor no Conselho de Minas. Em 1743, porém, recebeu uma revelação divina, uma percepção direta do mundo espiritual, que lhe permitiu ver o céu e o inferno e conversar com anjos. Essa revelação foi seguida por uma série de visões elaboradas, juntamente com uma tremenda efusão de escritos sobre o mundo espiritual e a interpretação das escrituras.96

Uma parte fundamental da vida e dos escritos de Swedenborg é a natureza do amor, tanto em suas expressões espirituais quanto físicas. Como afirma Robert Rix: “No cerne da concepção de Swedenborg sobre a Verdadeira Religião estava uma teologia sexual”.97 Embora Swedenborg nunca tenha se casado, ao longo de sua obra posterior, ele parece ter se interessado extremamente pela questão do sexo; além disso, ele de fato teve amantes e defendeu bordéis legais, e seus diários de sonhos contêm uma grande quantidade de imagens altamente eróticas.98 No entanto, ele via na relação sexual não apenas uma fonte de prazer físico ou um meio de reprodução, mas um mistério divino de profundo significado metafísico e, em última análise, uma chave para a união espiritual. Marsha Keith Schuchard sugere que é possível que Swedenborg tenha aprendido algo sobre técnicas sexuais cabalísticas, e talvez até mesmo algo sobre técnicas sexuais taoístas ou tântricas, com soldados e missionários que retornaram à Europa após viajarem pelo Oriente.99

Quaisquer que sejam suas fontes, Swedenborg se preocupou particularmente com o tema do sexo em seus últimos anos, quando ele aparece em seus diários, como seu Diário dos Sonhos (Schuchard argumenta que há evidências nesses diários de que Swedenborg empregou técnicas complexas de meditação, visualização e controle da respiração com o objetivo de transformar a energia sexual em estados de consciência alterada e experiência mística).100 Seu texto mais importante sobre o assunto é seu tratado sobre As Delícias da Sabedoria Pertinentes ao Amor Conjugal (Delitiae sapientiae de amore conjugiali, 1768), que explora a relação entre sexo físico e amor espiritual. Como Swedenborg o define, o amor conjugal é a união espiritual mais profunda entre o homem e a mulher em seus eus mais íntimos, uma espécie de casamento interior entre masculino e feminino:

O amor conjugal… é o mais íntimo de todos os amores, e tal que o parceiro vê o parceiro em mente (animus) e mente (mens), de modo que cada parceiro tem o outro em si mesmo, isto é, que a imagem, ou melhor, a semelhança do marido está na mente da esposa e a imagem e semelhança da esposa está na mente do marido, de modo que um vê o outro em si mesmo, e assim coabitam em seus íntimos.101

E essa união conjugal interna, por sua vez, recria a unidade primordial do ser humano (homo) como um ser total que contém tanto o masculino quanto o feminino em si:

O amor nada mais é do que um desejo e, portanto, um esforço em direção à conjunção; e o amor conjugal à conjunção em um. Pois o homem e a mulher foram criados de tal forma que, de dois, podem se tornar um só homem, ou uma só carne; e quando se tornam um, então, juntos, são um homem (homo) em sua plenitude.102

O ponto-chave, no entanto, é que essa união não se limita puramente ao plano espiritual ou místico para Swedenborg. Em vez disso, como na tradição cabalística, o amor físico e a união sexual real também podem servir como uma escada ou trampolim para esse estado superior de amor conjugal e, por sua vez, o poder espiritual do amor conjugal fluirá de volta e santificará a união física:

O amor carnal pode ser sagrado porque é o primeiro degrau na escada para o verdadeiro amor de Deus. O “amor do Sexo” pode ser inicialmente “corpóreo”, mas “como o homem nasceu para se tornar espiritual”, também se torna espiritual… O acesso ao estado divino do humano por meio do “amor conjugal” reside não apenas na unificação das mentes, mas também “nos órgãos consagrados à geração”.103

As visões de Swedenborg sobre o amor conjugal teriam um tremendo impacto na maioria das tradições esotéricas e ocultas posteriores no Ocidente, a partir do século XVIII. Além disso, logo seriam associadas a ideais de libertação social e política. Entre os muitos autores profundamente influenciados por Swedenborg, por exemplo, estava o místico e poeta britânico William Blake (1757-1827). Como vários estudiosos argumentaram, Blake, assim como Swedenborg, via a união sexual entre homem e mulher como um meio de restaurar o estado andrógino do homem não caído no Paraíso. “O amor sexual é sacramental para Blake… Na união sexual, a encarnação divina e a subsequente elevação do humano a um espírito regenerado são espelhadas e repetidas.”104

Ao contrário de Swedenborg, no entanto, Blake também era bastante crítico das instituições sociais, políticas e religiosas dominantes ao seu redor, que ele via como repressivas e exploradoras; Ele estabeleceu uma ligação clara entre repressão política e sexual, ambas incorporadas no sistema opressivo do casamento forçado (o “carro fúnebre do casamento”, como ele o chama): “a forma paradigmática de opressão é sexual, e o casamento por necessidade é a forma primária que tal opressão sexual assume”. 105 Por outro lado, Blake também vinculou a libertação social e política à libertação sexual, isto é, a uma liberdade total do ser humano em seus aspectos físicos e sociais. Como Morton Paley afirmou, “Blake prevê, não revolução e liberdade sexual, mas uma revolução que é libidinal por natureza”. 106 Essa visão de liberdade sexual aparece em grande parte da obra de Blake, como em Visões das Filhas de Albion e O Matrimônio do Céu e do Inferno, mas alcança uma de suas expressões mais claras em América (1793). Aqui, a libertação das treze colônias por Orc é descrita como uma derrota tanto da tirania religiosa quanto da repressão sexual, e o triunfo sobre a escravidão sexual da religião torna-se uma espécie de evento milenar:

As portas do casamento estão abertas, e os Sacerdotes em escamas farfalhantes Correm para abrigos de répteis, escondendo-se das fogueiras de Orc,

Que brincam ao redor dos telhados dourados em coroas de desejo feroz,

Deixando as fêmeas nuas e brilhando com a luxúria da juventude

Pelos espíritos femininos dos mortos, que anseiam pelos laços da religião;

Fugem de seus grilhões avermelhados, e em longos arcos estendidos, sentados:

Eles sentem os nervos da juventude se renovarem, e os desejos dos tempos antigos,

Sobre seus membros pálidos como uma videira quando a uva tenra aparece.107

Como veremos ao longo dos capítulos seguintes, essa ligação entre libertação sexual e libertação política é um dos temas mais recorrentes na história da magia sexual no Ocidente.

CONCLUSÕES: O GRANDE SEGREDO E O GRANDE AGENTE

O amor é uma das imagens mitológicas do Grande Segredo e do Grande Agente, um vazio e uma plenitude, uma flecha e uma ferida.

– Eliphas Lévi, Dogma e Ritual da Alta Magia.

A batalha será mais feroz em torno da questão do sexo.

– Aleister Crowley, As Confissões de Aleister Crowley.

Em suma, as origens da magia sexual moderna fluem de duas correntes muito diferentes no imaginário religioso ocidental. A primeira é o pesadelo, em grande parte fantástico, mas notavelmente duradouro, da licenciosidade sexual e da magia negra, que estava associado a praticamente todos os grupos heréticos, das Bacantes às bruxas. Em sua maioria, as acusações de licenciosidade sexual contra eles eram projeções miméticas das próprias fantasias, medos e desejos da ordem dominante, agora refletidos no espelho desses grupos marginalizados. Mas, mais importante, essas fantasias tendiam a se concentrar em medos específicos de subversão social e política. Muitos desses grupos, como os gnósticos, os bogomilos e os cátaros, buscavam de fato alguma forma de libertação da ordem social vigente por meio de suas práticas sexuais. Ironicamente, como os primeiros cristãos, esses grupos eram geralmente altamente ascéticos, às vezes até antissexuais. E, no entanto, eram atacados como perigosamente subversivos, não pelo que realmente faziam — ou seja, desafiar os sistemas dominantes de casamento e autoridade religiosa —, mas sim pelos crimes imaginários de licenciosidade sexual e magia negra. Como vemos em romances populares como O Código Da Vinci, essa narrativa altamente imaginativa ainda está muito presente hoje. A história de Brown mais uma vez revive a imagem de antigos grupos de gnósticos realizando ritos sexuais secretos, mesmo diante da perseguição contínua da Igreja Católica. De fato, a descrição de Brown dos ritos gnósticos secretos parece ter sido tirada diretamente de Epifânio e de outros relatos cristãos primitivos:

Em um altar baixo e ornamentado no centro do círculo, jazia um homem. Ele estava nu, deitado de costas e usando uma máscara preta… Montada em seu avô, estava uma mulher nua usando uma máscara branca, com seus exuberantes cabelos prateados esvoaçando atrás dela… Ela girava no ritmo do cântico… O cântico atingiu um auge febril. O círculo de participantes parecia quase estar cantando agora, o barulho aumentando em crescendo até o frenesi. Com um rugido repentino, toda a sala pareceu explodir em clímax.108

Embora esses tipos de relatos sejam em grande parte fantasiosos, a segunda corrente que alimenta a magia sexual moderna é aquela que pode ser mais facilmente documentada historicamente. Esta é uma tradição muito antiga que permeia o esoterismo ocidental, desde a magia grega antiga até o gnosticismo, a cabala, a alquimia renascentista e os primeiros místicos modernos como Swedenborg. Em todas essas tradições, há uma estreita conexão entre poder espiritual e união sexual; mas em nenhuma delas vimos qualquer traço de comportamento orgiástico, imoralidade, magia negra ou o uso explícito de relações sexuais como meio de alcançar efeitos mágicos. Cada uma dessas tradições buscava, em certo sentido, libertação ou liberdade — mas tipicamente um tipo de liberdade espiritual, em vez de uma forma de liberdade moral, social ou política.

De qualquer forma, no século XIX, essas duas correntes passaram a se fundir e se misturar cada vez mais, formando uma visão rica, complexa e profundamente ambivalente de sexo e magia no imaginário ocidental. Como Eliphas Lévi concluiu em seu monumental estudo sobre magia, o amor é em si a imagem do Grande Segredo e do Grande Agente, “uma flecha e uma ferida”. O amor sexual era, portanto, imbuído de uma aura de poder impressionante, porém aterrorizante, como uma força que poderia ser exercida pelo mago treinado, mas que poderia facilmente levar alguém pelo caminho sombrio da ruína moral, da depravação e da escravidão a Satan. Não é de todo surpreendente, portanto, que essas diversas crenças e tradições, cada vez mais mescladas, tenham contribuído para o surgimento, em meados do século XIX, de um sistema bem desenvolvido e sofisticado de magia sexual. Mas, para compreender essa nova forma de magia sexualis na era moderna, também precisaremos analisar atentamente as mudanças de atitude em relação ao corpo, ao sexo e ao casamento na sociedade europeia e americana nos últimos duzentos anos.

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