Beladona: O Fruto dos Mortos

Por Coby Michael. Tradução de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares@conhecimentosproibidos e @magiasinistra.

Disclaimer: A beladona (Atropa belladonna), pode ser um veneno mortal em certas circunstâncias. Estas informações são apenas para fins educacionais e o leitor é o único responsável por qualquer dano que possa advir da ação com base nessas informações.

Das margens do Mediterrâneo ao extremo norte da Escandinávia, existem histórias de espíritos femininos profundamente associados ao destino dos humanos. Eles são os espíritos mais primitivos, e até os deuses estão sujeitos aos seus desígnios. Essas entidades, muitas vezes sombrias ou primordiais, representam os vastos e insensíveis poderes da Natureza e os mistérios da Morte. Do Relevo de Burney representando a Rainha da Noite e os pássaros demoníacos voadores noturnos da antiga Mesopotâmia (conhecidos em hebraico como lilit), às antigas divindades gregas da vingança conhecidas como Erínias ou Fúrias, às sagas islandesa e nórdica que falam de espíritos sanguinários e alados do campo de batalha conhecidos como Valkyrjur: o céu escuro parece estar repleto desses espíritos femininos que voam à noite.

No folclore nórdico, o espírito pode ser enviado na forma de fetch [NOTA 2] ou duplo astral conhecido como fylgja para realizar os objetivos ocultos de alguém. O fylgja, ou “fetch que conecta a persona à natureza, aos reinos animal e vegetal” (Frisvold, 2021) opera da mesma forma que o familiar [NOTA 5] da bruxa. Esses espíritos podem realizar tarefas mágicas para seus homólogos e geralmente são descritos como femininos na forma. Esta capacidade de enviar o espírito está associada a bruxas e outros praticantes de feitiçaria, que poderiam deixar seus corpos e agir como forças da natureza para proteger seus entes queridos no campo de batalha. Acreditava-se que muitas mulheres (e provavelmente alguns homens) protegiam seus maridos em batalha desta forma, e é aqui que a conexão entre Valquíria e praticante de magia se torna vaga.

O voo espiritual é uma das habilidades características da bruxa e é a base de uma série de práticas tradicionais de bruxaria associadas ao Sabá das Bruxas e sua contraparte pré-cristã, a Caçada Selvagem. Esta congregação noturna e procissão espiritual era composta por um zoológico de entidades que mudavam de forma [NOTA 3], desde as divindades que lideravam a procissão até os espíritos humanos e animais que são seu séquito. A transformação em gansos, corujas, falcões e muitos outros animais alados e terrestres eram veículos comuns para voar por aqueles que caminham pela Estrada da Noite.

A capacidade de enviar o espírito é um tema comum. Seja para curar ou para prejudicar, para entrar nos sonhos de outra pessoa ou para viajar longas distâncias para afetar o mundo físico, vemos esse tema repetido tanto como uma acusação de bruxaria diabólica quanto como um sinal do poder espiritual de alguém. Existem várias técnicas de indução de transe, incluindo posturas rituais, respiração controlada e exposição a estímulos externos, todas usadas isoladamente ou em combinação com plantas e fungos visionários para alcançar o voo espiritual e o transe extático. Nas formas europeias de bruxaria e nas suas ramificações norte-americanas, pode-se olhar para uma família específica de plantas que ajudou muitos nesta busca (algumas tão bem que nunca mais voltaram!). A família em questão é a infame e onipresente família das beladonas, ou Solanaceae. Essas plantas têm importantes usos medicinais e espirituais em todo o mundo e incluem membros como a maçã espinhosa, o meimendro e a beladona. Muitas plantas desta família têm propriedades visionárias ou enteogênicas e são usadas hoje em cerimônias de fitoterapia pelos povos indígenas, incluindo o tabaco, a trombeta do anjo e as daturas. As beladonas enteogênicas devem sua potência química aos alcaloides tropano, que são anticolinérgicos – valiosos na medicina, mas na situação certa, podem ser venenos mortais. (Miguel, 2021)

Uma Valquíria.

A planta que engloba todas essas coisas não é outra senão a Atropa belladonna, comumente conhecida como beladona em português. O poder sobre a vida e a morte, o frenesi da batalha, a fuga do espírito e o poder visionário estão todos dentro da sombra lançada por este potente espírito vegetal. Esta é uma planta venenosa cuja ligação à guerra remonta a séculos, usada para melhorar a capacidade de combate e a resistência à dor e, alternativamente, para envenenar o exército inimigo. Alguns acreditam que o nome beladona esteja associado ao culto de Bellona, uma deusa romana da guerra cujos devotos comiam os frutos da planta para entrar em transe frenético. Vemos essa conexão com figuras femininas associadas à batalha e ao derramamento de sangue continuada na história da Atropa belladonna e seu caminho mortal ao longo da história por ninguém mais do que a Valquíria. A valkyrja (nórdico antigo) para Valquíria foi uma parte importante da cosmologia nórdica e de suas contrapartes germânicas do continente. Em geral, a Valquíria era uma das muitas categorias de espíritos femininos, ou disír, e poderia até ser o corpo espiritual de uma pessoa viva enviada para vários fins. Elas poderiam ser esposas ou irmãs de heróis humanos que vieram ajudá-los na batalha com sua magia. Esses espíritos eram vistos como protetores, mas também potencialmente destrutivos. O nome Valquíria significa “escolhedora dos mortos”, e sua função mais importante era escolher quem morreria em batalha e qual deles seria levado para Valhalla. A Valquíria, conforme visto em suas funções características, é capaz de viajar entre os reinos. Psicopompa e espírito intermediário que viaja entre o reino intermediário, a terra dos mortos e o reino dos deuses, a Valquíria nos ensina a fazer o mesmo, tirando-nos do campo de batalha, curando nossas feridas e nos lembrando que, se nós escolhermos, podemos lutar novamente!

A ligação entre a Valquíria e a Atropa belladonna pode ser percebida nos vários nomes da planta, que dão pistas dessa ligação. Quando olhamos para as formas como a beladona tem sido usada historicamente e para as características ocultas que apresenta hoje, podemos ver que esta ligação é muito mais profunda do que a linguagem, que é simplesmente um reflexo da afinidade já profundamente arraigada entre estes espíritos.

Odin/Wotan e as Valquírias estão inextricavelmente ligados, já que estas últimas têm a função de transportar as almas dos guerreiros caídos para Valhalla para aguardar o Ragnarök, a batalha final no fim do mundo. Em alemão, a planta tem sido chamada de wutbeere ou baga da raiva, sinônimo do deus germânico Wotan (cujo nome significa o mesmo). Esta é uma raiva extática, um frenesi xamânico frequentemente praticado para adquirir conhecimento oculto ou ajudar na batalha. Suas bagas podem ter sido uma das ervas usadas pelos famosos berserkers sedentos de sangue, que eram amplamente temidos por seu frenesi de batalha e resistência à dor. Considerando que a planta foi usada pelo menos até o século 19 por caçadores na Alemanha para melhorar sua visão, foco e capacidade de caçar, parece bem possível que esta erva analgésica que altera a consciência causaria efeitos que beneficiaria um guerreiro ou caçador. (Rätsch, 2005)

Rätsch também menciona um uso semelhante no Marrocos, onde são consumidas 3-4 bagas para promover o foco e a clareza mental. A estimulação, a excitação e a acuidade visual que podem ser experimentadas em pequenas doses estão alinhadas com os efeitos desejados das ervas que melhoram o desempenho. Um dos nomes latinos anteriores da Atropa belladonna, Solanum furiale, é outra referência à capacidade da planta de acalmar e sedar (solamen), e também de causar frenesi (furiale). (Hansen, 1978) Esta ligação com as Fúrias da mitologia grega é outra conexão interessante com a associação desta planta com espíritos femininos ferozes e voadores.

Mais uma vez, existe aqui uma ligação multifacetada entre os usos práticos da beladona e as suas associações esotéricas com a Caçada Selvagem [NOTA 1], um conceito pré-cristão predominante em toda a Europa. Esta procissão de espíritos liderada por Odin/Wotan e várias outras divindades é um aspecto importante do Sabá das Bruxas medieval, no qual o voo dos espíritos é o tema principal. O voo espiritual é um tipo de viagem astral ou viagem fora do corpo que pode ser alcançada através de uma variedade de técnicas de indução de transe, incluindo o uso de várias ervas e fungos enteógenos. A Valquíria é um dos vários aliados espirituais que podem ser chamados para facilitar esta transvecção do espírito para outros reinos e para a comunicação espiritual. Através da ação ritual e da visualização, podemos invocar esses espíritos e mudar de forma à sua semelhança para deixar os limites do nosso corpo e ir para o mundo espiritual. Como ingrediente típico do unguento voador das bruxas medievais, a Atropa belladonna também está ligada ao processo, pois seus poderosos alcaloides tropanos podem ser usados para mudar a consciência. Na meditação, na criação de feitiços e no ritual enteogênico, a beladona nos ajuda a nos conectar com o mundo espiritual e com nossas próprias formas incorpóreas.

As Valquírias são emissárias multifuncionais da morte. “No baixo Reno, seus frutos são conhecidos como walkerbeeren ou Bagas das Valquírias e qualquer um que os comesse seria vítima das Valquírias.” (Rätsch, 2005 citando Perger, 1864) Elas são espíritos de vitória, vingança e poderes de libertação e ressurreição. Num contexto xamânico, esses espíritos podem auxiliar na transição entre os reinos. À medida que partes do eu morrem, elas são eliminadas e transformadas. Grande parte desse processo ocorre nos reinos inferiores com a ajuda dos ancestrais e dos espíritos da natureza. O espírito da Valquíria e sua contraparte botânica preparam a pessoa para esta jornada, trazendo força, destemor e resiliência às adversidades. É através desta morte simbólica que somos capazes de nos conectar com o mundo espiritual, mudar partes de nós mesmos e perseguir as nossas ambições sem restrições.

A VALQUÍRIA E A BELADONA

A seguir está uma lista de temas e associações que tanto o espírito da Valquíria quanto o espírito da Atropa belladonna têm em comum. Esta lista não é de forma alguma exaustiva, mas oferece um ponto de partida.

  • Auto-sacrifício, ressurreição, morte xamânica
  • Vitória, vingança e superação de adversários
  • Voo espiritual, viagens ao outro mundo e espíritos familiares
  • Auto-capacitação e capacitação dos outros
  • Facilitação do processo de renascimento espiritual, emocional e mental
  • Devorar energias escuras e prejudiciais para a cura
  • Conectar-se ao guerreiro interior e curar feridas de batalha
  • Proteção espiritual ao entrar na “batalha”

As pessoas muitas vezes perguntam por que eu escolheria trabalhar com temas tão “sombrios” e com plantas que foram “usadas para causar danos”. Minha resposta é que a escuridão que percebemos vem daquilo que está oculto, e tudo o que essas coisas desejam é ser compreendido. Isso é algo com o qual todos podemos nos identificar. Todo mundo quer ser visto, especialmente as partes internas de nós mesmos. A Valquíria nos guia e a beladona nos dá a capacidade de ver no escuro. Tanto a Valquíria como o espírito da Atropa belladonna foram fundamentais na minha própria jornada espiritual e apresentaram-se como aliados voluntários que não querem nada mais do que capacitar os outros. São espíritos que estão dispostos a passar pelos processos simbólicos (e literais) de morte que enfrentamos como humanos. Elas são aliadas de apoio que estiveram nas profundezas mais sombrias e continuam a retornar para ajudar a guiar outros através das sombras. No final, cabe a nós subir ao topo da Árvore do Mundo ou habitar profundamente em suas raízes.

BIBLIOGRAFIA

Frisvold, Nikolaj de Mattos. Trollrún: A Discourse on Trolldom and Runes in the Northern Tradition. Hadean Press. 2021.

Hansen, Harold. The Witch’s Garden. 1983. Weiser Inc.

Michael, Coby. The Poison Path Herbal: Baneful Herbs, Medicinal Nightshades and Ritual Entheogens. Inner Traditions/Park Street Press. 2021.

Rätsch, Christian. The Encyclopedia of Psychoactive Plants: Ethnopharmacology and its Applications. Inner Traditions International. 2005.

NOTAS DO TRADUTOR

[1] Caçada Selvagem: Um antigo mito europeu que envolve ver um grupo de caçadores ou caçadores fantasmas (muitas vezes considerados mortos ou talvez seres-fadas), em trajes completos de caçadores, cavalgando loucamente durante a noite. Em algumas tradições wiccanianas, isso é interpretado como o Deus Chifrudo no Samhain buscando loucamente as almas dos mortos recentes. Como o Samhain é um momento “entre os mundos” (e, portanto, fora do tempo), Ele às vezes negligencia a diferenciação entre os vivos e os mortos. Algumas tradições pagãs reconstituem a Caçada Selvagem numa espécie de caçada semi-dionisíaca e xamânica.

[2] Fetch: Na Bruxaria, o fetch costuma ser:

  1. Uma espécie de anjo da guarda.
  2. Um nome para o corpo astral.
  3. Espírito enviado, como resultado de um feitiço ou ritual, para recuperar algo.

[3] Metamorfomagia: Nome dado à suposta capacidade de mudança de forma, geralmente temporária, da essência de uma pessoa de ser humano para outra criatura viva. O mito mais famoso da mudança de forma é o do lobisomem. Embora algumas pessoas afirmem que a mudança na aparência é física, a maioria reconhece que é espiritual. Internamente, isso muda a mentalidade do praticante, permitindo que a pessoa experimente todos os benefícios e desvantagens de ser outro animal. Por exemplo, você pode experimentar a força, a velocidade e os sentidos aprimorados de um leão ao se transformar em um leão. O animal escolhido também aparece na aura de uma pessoa, então outros – mesmo que não consigam ver auras – podem ter a impressão de que a pessoa é o animal e não o humano. No filme “Viagens Alucinantes (Altered States, 1980)”, o personagem principal muda de forma humana para pré-humana. O mito do vampiro, de acordo com o livro Drácula, de Bram Stoker, indica que o vampiro pode se transformar em lobo, rato, aranha ou partícula de poeira em um raio de lua. A metamorfomagia é mais comumente praticada por xamãs.

[4] Psicopompo: Uma entidade não física que guiaria a alma de uma pessoa recentemente falecida para o seu lugar na vida após a morte. Dependendo da religião ou tradição, pode ser um anjo, um espírito, uma divindade e pode manifestar-se como um animal. Metaforicamente, um psicopompo é qualquer tipo de guia que o conduz de um nível de existência, ou mentalidade, para outro. Por exemplo, na psicologia junguiana, o psicopompo é uma espécie de mediador entre a mente consciente e a inconsciente.

[5] Familiar: De acordo com a tradição antiga, acreditava-se que um espírito do Outro Mundo habitava o corpo físico de um animal ou criatura. Os recipientes tradicionais para tais espíritos eram o gato, o rato, o furão, a lebre, o morcego, a cobra, o cão de caça ou o pássaro – especialmente um corvo ou uma coruja. A tradição que cerca o espírito familiar indica que uma Bruxa recebia um após a iniciação na seita das Bruxas. Fonte: The Witch’s Familiar (O Familiar da Bruxa), por Raven Grimassi.

SOBRE O TRADUTOR

Ícaro Aron Soares, é colaborador fixo do PanDaemonAeon e administrador da Conhecimentos Proibidos e da Magia Sinistra. Siga ele no Instagram em @icaroaronsoares, @conhecimentosproibidos e @magiasinistra.

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