
A Fonte de Hécate
Por Kenneth Grant, Hecate’s Fountain, Parte II, Introdução. Tradução de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares, @conhecimentosproibidos e @magiasinistra.
Pretende-se dar nesta seção uma interpretação do Livro da Lei à luz da magia da zona malva. O seguinte breve resumo das circunstâncias existentes no momento em que Crowley recebeu o Livro é para leitores que não os conhecem. 1
Em abril de 1904, Crowley estava no Cairo em lua de mel com sua esposa Rose, a quem chamava de Ouarda. 2 Ela havia recebido instruções, nos Planos Interiores, no sentido de que seu marido deveria se preparar para receber uma comunicação oculta prevista para começar em 8 de abril precisamente ao meio-dia.
Crowley recebeu a mensagem com escárnio. Ouarda até então não havia demonstrado interesse ou aptidão para assuntos ocultos, e ela estava sugerindo um modo de procedimento que Crowley considerava um desperdício de tempo e energia. Mas ela insistiu e, para surpresa de Crowley, começou a fazer-lhe perguntas de natureza cabalística que o fizeram sentar e prestar atenção, porque tocavam em experiências internas particulares das quais só ele poderia ter algum conhecimento. Mesmo assim, ele permaneceu cético. Ele concordou em aguardar a comunicação prometida, mas decidiu não agir de acordo com as instruções, se houvessem, que recebeu. Ele pretendia quebrar todas as regras do jogo para provar a sua satisfação que, se a mensagem fosse de importância vital para a humanidade – como Ouarda tinha certeza de que era – ela viria através de qualquer coisa que ele pudesse fazer para impedi-la. E isso aconteceu.
O AL foi transmitido para Crowley em três dias consecutivos, um capítulo por dia, nos dias 8, 9 e 10 de abril de 1904, do meio-dia à 1 hora da tarde precisamente. Foi falado pela voz de uma entidade desencarnada que se identificou, no curso da transmissão, como “Aiwass, o ministro de Hoor- paar-kraat” 3 Hoor-paar-kraat significa literalmente “o Hoor, ou Herdeiro, do Anão’. O anão (kraat), em sua função oculta, é o manequim ou ‘criança’ mágica que concentra em si a vontade do mago. Seu tipo astronômico é Sirius ‘B’, a estrela anã obscura de energia imensamente concentrada que acompanha Sirius ‘A’, representado por Rá-Hoor-Khuit. 4 O Livro não tinha título. Crowley, portanto, intitulou, provisoriamente, Liber L vel Legis. 5 O texto alude a ele como “o tríplice livro da Lei”. 6 L é a letra de (Libra) e da Senhora da Balança, Maat. O tríplice livro da Lei pode, portanto, ser interpretado como o tríplice livro de Maat.
Os nomes dos principais protagonistas são Nuit, Hadit, Rá-Hoor-Khuit e Hoor-paar-Kraat. Nuit é uma forma de Ísis; Hadit é a semente secreta dentro dela que se manifesta como seu filho, ou Har 7 (Hórus), que é uma entidade dupla, gêmea, compreendendo Rá-Hoor-Khuit e Hoor-paar-Kraat, Hórus e Set. Celestialmente, eles representam o equilíbrio dos dois sóis no horizonte do Duplo Equinócio, do qual é o símbolo astrológico. Esses gêmeos travam uma luta perpétua pela supremacia que termina sempre em vitória e derrota alternadas para um ou outro. Como tais, eles são deuses no Tempo, e podem se libertar do ciclo apenas nos quatro Momentos (Primavera-Verão- Outono-Inverno) quando o Tempo é Não (Nuit), ou seja, nos equinócios e solstícios. Os Momentos são tipificados pelos Portais Elementais representados pelas quatro direções do espaço: norte, sul, leste e oeste. Através deles é possível retornar ao Nada original, Nuit, a Mãe de Tudo. Mas este Nada é tal apenas em relação à existência limitada pelo tempo, representada pelas divindades gêmeas lutando pela supremacia. Enquanto elas existem no tempo e como tempo, Nuit existe no espaço e além do espaço; ela é, portanto, a chave para as regiões fora dos círculos do tempo e suas revoluções sempre recorrentes.
No capítulo 1 verso 22 do AL, Nuit se identifica com Ísis: “Eu sou o Infinito Espaço, e as Infinitas Estrelas dele…” 8 (Em inglês: Infinite Space, Infinite Stars formam I.S.I.S. – Nota do editor). É, portanto, como Nuit, Nu ou Nu-Ísis que ela tipifica a consciência estelar que se estende além do reino dos gêmeos solares, tanto em seu aspectos luminoso (Hórus) quanto em seu aspecto obscuro (Set). Em termos da Árvore Sefirótica, Nuit representa o NOX, ou escuridão, da consciência estelar refletida nos Túneis de Set. Isso é equilibrado por LVX, o Além da Luz, tipificado por Hadit. O equilíbrio dessas duas formas de consciência extracósmica além do tempo e do espaço é representado por Maat, que prenuncia o aeon além de Yuggoth (Kether), que existe fora da Árvore e além dos três véus do Ain: cabalisticamente representado por O-OO-OOO.
É significativo que o número 420 9 é o de Ísis, pela cabala grega. No Livro, Al Azif, há uma alusão a Yith, cujo número também é 420. Os Yith são descritos como “entidades não humanas de mente pura – que migram através dos aeons”.
Esses conceitos tornam-se compreensíveis apenas nas dimensões ulteriores esboçadas no Necronomicon, o livro da “imagem da Lei dos Mortos” 10, vislumbrado pela primeira vez por H. P. Lovecraft em seus pesadelos criativos. Uma certa tendência lamentável para historiar imagens arquetípicas fez com que alguns escritores relacionassem o “Tríplice Livro da Lei” a personalidades terrestres, juntamente com uma mistura de elementos divinos ou celestiais. Crowley, mesmo sabendo que o cargo de “Mulher Escarlate” poderia ser preenchido por qualquer mulher possuidora de qualidades psicomágicas particulares, reservou apenas para si o papel da Besta 666, alegando que ele cumpriu pessoalmente este cargo, pois havia sido escolhido pelos Chefes Secretos 11 para manifestar o Liber AL. No entanto, é ilógico considerar um lado de uma moeda como real e o outro lado como irreal; ou, como neste caso, um lado como mítico, o outro como histórico. Basta substituir os termos Adão e Eva por a Besta e Babalon, para revelar o absurdo de tal posição. Tipos que são essencialmente míticos e alegóricos não devem ser interpretados historicamente. Não se pode justificar a afirmação de ser a Besta bíblica, assim como não se pode justificar a afirmação de ser Yog-Sothoth, e é improvável que Crowley tenha realmente caído nessa armadilha. Algumas pessoas, no entanto, parecem imaginar que sim, e em seu zelo equivocado para defendê-lo, fizeram mais para distorcer e tornar desprezível seu trabalho do que aqueles detratores que meramente exibem uma ignorância geral do assunto.
O que se segue, portanto, é uma exploração das fontes possivelmente idênticas de inspiração responsáveis pela produção de tais versões fragmentárias da sabedoria ‘proibida’ que foram apreendidas de Fora por ocultistas nos últimos anos. Essas versões incluem o Livro da Lei de Crowley, o Livro da Imagem da Lei dos Mortos de Lovecraft (Necronomicon) e minhas próprias explorações da Zona Malva como refletidas dramaticamente através dos rituais da Loja Nova Ísis. Essas representações díspares do mito necessariamente se sobrepõem, se sobrepujam e colidem umas com as outras. Escolhi, portanto, deixá-las se expressar espontaneamente à medida que sua deixa as invoca, em vez de ‘compartimentá-las’.
Selecionei essas três facetas do mito porque elas manifestam muito vividamente aquela qualidade de intervenção de Fora, aquela sutil pericorese ou interpenetração de diferentes dimensões, peculiar à magia da Zona Malva. Além disso, porque sinto que essas contribuições para nosso conhecimento do Outro lado são mais típicas, mais essencialmente representativas e abrangentes do que muitas das numerosas comunicações que se apresentaram para consideração nos últimos cinquenta anos e que pretendiam emitir de fontes extraterrestres.
Além disso, – uma consideração de alguma importância para o leitor esteticamente sensível – esses fios possuem qualidades de elegância artística que os exaltam completamente acima do ‘material’ apresentado como evidência de relacionamento com Inteligências, supostamente superiores (ainda que apenas em relação à grandiloquência) às da Terra.
NOTAS:
1 Para um relato completo veja Confessions de Crowley, e The Equinox of the Gods.
2 Ouarda é meramente o árabe para Rose.
3 Hoor-paar-Kraat = o gêmeo obscuro de Hórus, ou seja, Set. Veja O Renascer da Magia para uma explicação completa dos termos usados neste capítulo.
4 Rá-Hoor-Khuit = Rá, a criança, ou projeção do Poder Mágico,
5 O título posterior, Liber AL vel Legis, foi sugerido por Frater Achad. (Veja seu Liber 31).
6 AL. I.35.
7 Hórus é o Har ou Herdeiro que é macho ou fêmea; masculino como RHK (o Heru ou Herói), feminino como HPK (o Hoor ou Houri). Como Massey mostrou, o har original, ou criança, era o filho da Mãe. Mais tarde, tornou-se o har ou herdeiro do Pai, quando as dinastias dos faraós foram finalmente estabelecidas.
8 Frater Achad, responsável pelos itálicos, foi o primeiro a apontar sua identidade.
9 O + OO + OOO = 420, quando O = 70. Setenta é o número de Ayin ou Ain, o Olho
10 Carta de H. P. Lovecraft para H. O. Fischer datada de “Kadath Desconhecida”, final de fevereiro de 1937. (Cartas Selecionadas de H. P. Lovecraft, vol.V, p.418)
11 Nos termos do AL Azif, os Grandes Antigos.
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