
Kenneth Grant.
A Índia e o Ocultismo: A Influência da Espiritualidade do Sul da Ásia no Ocultismo Ocidental Moderno
Por Gordan Djurdjevic, India and the Occult: The Influence of South Asian Spirituality on Modern Western Occultism. Tradução de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares.
OS SEGREDOS DO TANTRA TIFONIANO: KENNETH GRANT E AS INTERPRETAÇÕES OCULTAS OCIDENTAIS DA ESPIRITUALIDADE INDIANA
Kenneth Grant (1924–2011) foi um escritor britânico sobre assuntos ocultos, conhecido principalmente por desenvolver uma interpretação idiossincrática da obra de Aleister Crowley (1875–1947) e sua doutrina mágico-religiosa de Thelema.1 A obra de Grant gerou um pequeno, mas devotado, seguidores e, além de suas atividades literárias, ele também foi reconhecido como o chefe da fraternidade mágica conhecida como Ordem Tifoniana.2 Em seu corpo de trabalho, Grant criou uma mistura improvável composta de tópicos temáticos que incluem tradições esotéricas orientais e ocidentais, além de referências consistentes a obras artísticas e literárias infundidas com o aroma do misterioso, fantástico e estranho, com um lugar dominante atribuído à produção ficcional de H. P. Lovecraft e às criações visionárias de Austin O. Spare. O estilo literário de Grant é notório por ser hermeneuticamente opaco — aqueles que não se deixam intimidar por ele sustentam (por exemplo, Bogdan, 2003: viii) que a imersão em seus labirintos verbais e conceituais equivale a uma forma de lesemysterien. Neste capítulo, o foco será a influência das tradições espirituais indianas na obra de Grant e sua interpretação de sua similaridade com o ocultismo ocidental.
Embora já tivesse tido algumas experiências ocultistas anteriores, a carreira mágica de Grant começou para valer com seu aprendizado com o idoso Crowley em 1945.3 É de alguma importância no contexto atual que Grant (1980: 90, n.5) descreva suas práticas místicas iniciais, iniciadas vários anos antes de seu encontro com Crowley, como “certos exercícios de ioga envolvendo atenção prolongada ao fluxo de imagens mentais”. Apesar de seu compromisso como secretário de Crowley ter durado apenas alguns meses, a experiência provou ter um impacto para toda a vida. Os primeiros escritos de Grant, no entanto, abordavam principalmente tradições espirituais hindus e apareceram em revistas indianas como The Call Divine (O Divino Chamado, Bombaim) e Ananda Varta (Banaras) no início da década de 1950.4 Nesses escritos, talvez surpreendentemente para aqueles familiarizados com sua produção posterior, Grant aparece principalmente como um devoto. A maior parte de seus escritos nesse período é fortemente influenciada pela vida e pelo pensamento do místico Ramana Maharshi, do século XX. Em particular, Grant parece estar impressionado com a prática espiritual de ātma vicāra, em outras palavras, autorreflexão interna que visa eventualmente levar à descoberta do “verdadeiro eu” através do processo de superação da tagarelice mental pela verificação consistente da identidade real do observador de seu conteúdo: “Quem sou eu?”5 Pode-se argumentar que o processo de ātma vicāra, juntamente com seu interesse no não dualismo ontológico (advaita), eventualmente levou Grant à elaboração de um universo mágico extremamente complexo, entendido como uma projeção de consciência singular, que em si é apenas uma ilusão, glamour, māyā. Esta questão será aprofundada posteriormente.6
Tendo em mente o foco de nossas considerações atuais, é de grande relevância que, já em um artigo publicado em 1954, Grant tenha estabelecido uma correlação entre os sistemas esotéricos oriental e ocidental.7 Mais precisamente, ele estabeleceu uma conexão entre quatro níveis de consciência, conforme analisados na metafísica tradicional indiana, e as representações ocidentais dos mesmos fenômenos, apresentadas de acordo com o glifo da Árvore da Vida (como empregado na tradição ocultista ocidental).8 Na visão de Grant, os dois sistemas, indiano e ocidental, são idênticos em sua perspectiva fundamental, como fica evidente a partir destes conjuntos de conceitos análogos:
Turiya = O Vazio = A Realidade Única = O Eu = A Luz Ilimitada [Ain Soph Aur] da Tradição Ocidental.
Sushupti = A Semente = Estado de dois potenciais concentrados como um Bindu Maciço, ou Ponto de Luz, radiante de bem-aventurança interior = Kether da Tradição Ocidental.
Svapna = Os primeiros movimentos internos e latentes da Luz e sua divisão na Vontade dinâmica ativa e na Imaginação fluídica passiva (Shiva e Shakti) = Chokmah e Binah da Tradição Ocidental.
Jagrat = O sentimento espontâneo de individualidade expresso no conflito constante dos dois polos opostos da consciência, ou forças = Chit jada granthi = o Ego, ou Jiva = Daäth, ou a “falsa” Sephira da Tradição Ocidental. (2006: 46-7)9
Dois elementos nesta citação merecem comentários adicionais. Uma delas diz respeito à correlação explícita entre as ideias metafísicas orientais e ocidentais, de uma maneira que compartilha semelhanças significativas com a posição doutrinária do Tradicionalismo ou Perenialismo.10 De acordo com essa visão, existe uma Tradição primordial que encontra suas expressões mais ou menos puras (ou melhor, mais ou menos corruptas) nos sistemas locais, tipicamente esotéricos, de teoria e práxis espiritual.11 No mesmo ensaio, Grant expressa essa visão de mundo de forma inequívoca. Referindo-se ao parágrafo já citado, ele afirma que
na mente do escritor, não há maior auxílio para consolidar o amor do Oriente pelo Ocidente, e vice-versa, do que a demonstração de que as diferenças aparecem apenas na superfície das duas tradições e não no Coração, onde tudo é Um e o Mesmo. (2006 [1954]: 48)
A diferença entre Grant e outros autores tradicionalistas, como René Guénon ou Ananda Coomaraswamy, reside em sua avaliação positiva da tradição ocultista/mágica ocidental (o que este último sem dúvida consideraria uma contratradição).12 Com esse gesto, Grant evidentemente reconhece a validade da corrente ocultista, e é paradigmático que sua estratégia de legitimação se baseie na respeitabilidade percebida da metafísica oriental. A correlação que Grant estabelece, portanto, serve simultaneamente a duas perspectivas que se reforçam mutuamente: é um exemplo de orientalismo positivo,13 assim como é um exemplo do tratamento respeitoso do ocultismo ocidental.
Outra questão implícita na correlação entre os quatro estados de consciência, conforme conceituados na metafísica indiana, e o modelo simbólico ocidental da Árvore da Vida diz respeito à priorização da consciência por Grant como a matéria primária da qual a realidade é feita.14 É quase desnecessário mencionar que este é um pressuposto comum na metafísica indiana, tanto hindu quanto budista. É, no entanto, um tanto atípico para o proponente do ocultismo ocidental enfatizar essa visão. Em grande medida, pode-se argumentar que Grant foi, nesse aspecto, influenciado não apenas por seu estudo da filosofia oriental, mas também pelos ensinamentos de Crowley, que, de forma semelhante, considerava a mente como fons et origo dos fenômenos mágicos e o projeto fundamental da realidade. No caso de Grant, isso fica evidente em sua correlação citada acima, na qual a analogia se concentra apenas nas modificações da consciência, e não no mapeamento do universo interno e externo, como é habitualmente o caso quando o modelo da Árvore da Vida é empregado.15
A posição perenialista com viés ocultista também é mantida e evidente na série de dez ensaios que Grant e sua esposa e colaboradora, Steffi Grant, que merece um estudo próprio, publicaram originalmente entre 1959 e 1963 sob o título Monografias de Carfax.16 O primeiro ensaio da série (Grant e Grant, 2006: 2-4), escrito por Steffi, mas em total concordância com as ideias de seu marido, novamente trata do glifo da Árvore da Vida. O ensaio é introduzido pela declaração (Grant e Grant, 2006: 3; ênfase adicionada) de que se trata de uma “nota sobre as modificações da Consciência Única” representada “por um diagrama colorido da Árvore da Vida Cabalística”. Significativamente, o diagrama é comparado ao Śrī Yantra,17 que “representa Devi [Deusa] em forma geométrica” e é interpretado como “um eidolon de Shakti, o aspecto manifesto e ativo da Divindade” (Grant e Grant, 2006: 3). Como no exemplo anterior, diversas estratégias de legitimação que se reforçam mutuamente são observáveis nessas declarações, cujo propósito, em termos gerais, é validar a similaridade entre a tradição espiritual indiana e o ocultismo ocidental. Essa abordagem, por mais controversa que seja, representa, sem dúvida, uma via original de interpretação intercultural e polinização cruzada conceitual. Mais uma vez, e sem menosprezar o valor da contribuição de Grant, é necessário enfatizar que as sementes para elucidar a metafísica indiana através das lentes da tradição ocultista ocidental, mapeando-a no modelo da Árvore da Vida, já haviam sido lançadas por Crowley em vários de seus importantes escritos.
AS TRILOGIAS TIFONIANAS
A primeira monografia publicada por Grant foi O Renascer da Magia, em 1972 (reeditada em 1991 e 2010). De fato, o manuscrito que ele submeteu foi considerado muito volumoso pela editora, e o texto foi dividido em dois volumes separados. A segunda parte foi publicada em 1973 como Aleister Crowley e o Deus Oculto. Em 1975, Grant publicou Cultos da Sombra, e os três livros, devido à consistência de seus temas recorrentes, passaram a ser considerados uma trilogia. Grant continuou a desenvolver suas ideias (ou, pelo menos, a exposição de suas ideias) em volumes subsequentes, que por vezes apareceram após um hiato significativo, e que eventualmente se materializaram como a trilogia tripla, habitualmente chamada de Trilogias Tifonianas. Além disso, os temas tifonianos também foram tratados de forma ficcional, e em particular o romance curto Contra a Luz (1997) é considerado um suplemento narrativo ao volume final das Trilogias, O Nono Arco (2002). A novela Dance, Boneca, Dance! (2003a) aborda temas tântricos. Grant também publicou suas breves reminiscências de Crowley e, com Steffi Grant, de Austin Osman Spare (Grant e Grant, 1998), além de sua monografia sobre este último (Grant, 1975b). E embora os temas principais de Grant apareçam consistentemente em todas as suas obras publicadas, o foco principal aqui será nas Trilogias Tifonianas.18
Seria quase impossível, e certamente excederia o escopo das presentes considerações, fornecer um relato abrangente do universo ideológico tratado nas Trilogias. Em vez disso, a ênfase aqui será na presença e no tratamento do material indológico. O assunto é mutuamente inter-relacionado e forma um todo complexo, mas por razões analíticas, proponho destacar e tratar com mais detalhes os cinco seguintes assuntos: (1) o tema subjacente da semelhança fundamental entre os mistérios do Oriente e do Ocidente, que é uma visão comumente sustentada na retórica do esoterismo ocidental, mas elucidada com a idiossincrasia particular de Grant; (2) a apresentação consistente de uma visão de mundo advaita (não dual) com uma ênfase concomitante na consciência como a única substância real do universo; (3) a correlação que Grant traça entre o ensinamento ontológico sobre a vacuidade, conforme exposto na metafísica oriental, e a elucidação mágica e cabalística ocidental do mesmo assunto; (4) a noção do Caminho da Mão Esquerda, sua correlação com a doutrina da reversão e sua deturpação como magia negra; e, finalmente, (5) a interpretação de Grant do Tantra e sua relação com a magia sexual associada a Crowley e sua Ordo Templi Orientis (OTO), da qual Grant se considerava, erroneamente,19 o líder.
SEMELHANÇA DA ORIENTE-OCIDENTE E A TRADIÇÃO DRACONIANA
Um dos elementos fundamentais do que ele percebe como semelhança entre as tradições esotéricas do Oriente e do Ocidente baseia-se na compreensão de Grant sobre a ideia de tradição. Como já mencionado, é possível discernir paralelos interessantes e diferenças significativas entre a abordagem grantiana e, por exemplo, a guénoniana em relação a essa noção. O pensamento de Grant sobre o assunto está profundamente enraizado no imaginário ocultista e compartilha, em sua apreciação da Índia e do Oriente, grande semelhança com a Teosofia, da qual, no entanto, difere devido à sua valorização positiva da magia e do caminho da “Mão Esquerda”.
Grant é um defensor do que ele designa como tradição Tifoniana ou Draconiana.20 Uma grande influência sobre Grant nesse aspecto é o egiptólogo especulativo britânico Gerald Massey (1828-1907). Na exposição de Grant, a tradição Draconiana, “a mais antiga do mundo” (1973: 109),21 que teve suas raízes históricas na África e que os egípcios elaboraram formalmente em um sistema, “floresceu posteriormente nos tantras da Índia, Mongólia, China e Tibete” (1972: 37). Segundo Grant, essa tradição se concentrava na adoração de divindades estelares, lunares e femininas.22 “A Deusa Sabeia Tifão, com sua ninhada de sete almas ou estrelas, precedeu os mistérios lunares” (1975a: 52), que estavam no centro do culto.23 Isso foi recebido com cruel hostilidade pelos seguidores de cultos solares e patriarcais posteriores.24 Como parte de sua propaganda hostil, os Osirianos ou Solaritas (como Grant os chama) pintaram a tradição Draconiana em termos moralmente negativos, como maligna, corrupta e depravada, e, como consequência, encararam esses mistérios mais antigos com horror. Os monumentos Tifonianos “foram mutilados e escarificados pelos adeptos dos cultos solares posteriores, que abominavam qualquer lembrança das origens sabeias [isto é, Draconianas/Tifonianas] de sua teologia” (Grant, 1972: 73). A tradição reapareceu, após seu longo declínio, “em obscuros escritos alquímicos no Ocidente e em tantras ocultistas orientais” (Grant, 1994: 1).
O traço distintivo da tradição draconiana assim concebida é a adoração de divindades femininas. A principal razão para isso, além das especulações metafísicas estelares,25 em outras palavras, quando relacionada a mulheres terrenas, é de natureza sexual e fisiológica (bioquímica).26 A tradição como tal considera o sexo um método de realização espiritual.27 Emerge muito claramente da obra de Grant que a principal razão para essa orientação não se relaciona ao aspecto hedonista do sexo ou à busca da felicidade orgástica.28 O principal propósito por trás da magia sexual é, propriamente falando, alquímico — se por essa designação entendermos a transmutação de substâncias materiais em seus equivalentes espirituais. Sua justificativa baseia-se no seguinte conjunto de ideias. Os verdadeiros segredos da magia são corporais.29 Esses segredos se relacionam com as secreções sexuais. A secreção mais importante é o sangue menstrual, que é ambrosíaco por si só ou se torna assim quando misturado ao esperma masculino. Assim, os elos que conectam o esoterismo do Oriente com o do Ocidente, segundo Grant, têm suas raízes na tradição draconiana da magia sexual. Proponho retornar à elucidação deste assunto posteriormente, ao discutir a abordagem particular de Grant ao Tantra e à magia sexual.
GRANT E O ADVAITA
Grant é um defensor consistente da cosmovisão advaita. Como já mencionado, uma grande influência sobre ele nesse sentido foi o famoso místico do sul da Índia, Ramana Maharshi,30 que foi tema de vários artigos iniciais de Grant. A filosofia advaita argumenta que somente o Eu [isto é, ātman, idêntico a brahman] existe verdadeiramente, sendo todo o resto simplesmente uma representação do mundo, o que é outra maneira de dizer que todo o resto é uma dualidade (dvaita) e, desse ponto de vista, não é ontologicamente real. A essência desse Eu verdadeiramente e unicamente existente é equiparada à consciência, da qual o mundo fenomenal é uma projeção.31 De acordo com a tendência geral da metafísica indiana, Grant considera a natureza insatisfatória da existência humana, a “escravidão da existência”, como resultado do erro epistemológico cometido pela identificação com as projeções ou modificações dessa Consciência Única. “A causa do mistério, do glamour ou da ignorância, como os budistas o chamam, é a identificação inicial e equivocada do Eu com seus objetos” (Grant, 1977: 24). Em outras palavras, a escravidão humana e os sofrimentos consequentes são devidos ao poder fascinante que o universo externo exerce sobre nós.
Aparentemente, a partir dos escritos de Grant, ele entende o caminho místico, ou meditação no sujeito-como-consciência, associado ao deus Śiva, como a forma tipicamente oriental de investigação que leva à iluminação, enquanto o método ocidental, mágico, consiste na meditação no mundo das formas associado a Śakti. Em uma passagem importante, Grant explica a lógica segundo a qual este último método efetivamente leva à libertação, afirmando que
ao “fazer a verdadeira vontade”, ou seja, deixar que todas as partes da imagem se realizem uniformemente, sem impedimentos ou impedimentos, chegamos a ver a ilusão da imagem e sua beleza miraculosa projetada nas águas brilhantes do Shiva Imóvel. Pois somente ao se retirar para um ponto de vista privilegiado, sem a própria imagem, e recusando-se a identificar o Eu com o ego que nela atua, a imagem pode ser vista em sua totalidade e como uma representação limitada, separada e totalmente ilusória dos pensamentos e desejos que formam um rio perpétuo de sonho desimpedido. (2006: 68-9)
O mundo é, portanto, na compreensão de Grant, uma projeção do Eu. Como projeção, carente de um fundamento ontológico inerente, sendo apenas uma aparência, o mundo também é uma ilusão mágica. No entanto, devido à sua dependência do Eu real como fonte da projeção, estudar este mundo mágico equivale, paradoxalmente, ao processo de autoinvestigação.32 O elaborado mapeamento do mundo fenomenal, incluindo seus aspectos ocultos, sutis e o que Grant habitualmente designaria como “transmundanos” ou “extraterrestres”, equivale, portanto, a um complexo ato de autodescoberta.33 Ao dominar o mundo por meio do domínio da magia, o indivíduo se liberta, percebendo que apenas o Eu existe, enquanto suas projeções são, da mesma forma e nesse sentido, irreais.34 A justificativa para um engajamento com o mundo, entendido como uma projeção, com o propósito de descobrir o Eu está, segundo Grant (2006: 13), contida na convicção de que, a menos que e “antes de compreendermos e identificarmos a verdadeira natureza deste Eu, tanto em seus estados de sonho quanto de vigília, somos meramente levados pelas experiências aparentemente fortuitas que surgem em nossa consciência”.
Em uma passagem importante, ao discutir a relação entre a verdadeira vontade e a falsa vontade, Grant argumenta que, de fato, não existe divisão na vontade, que é unitária e existe além do universo fenomenal. A vontade fenomenal é comparada ao reflexo do rosto no espelho: apenas um rosto realmente existe, mas a imagem refletida, embora ilusória em si mesma, ainda é um reflexo de algo real. Grant sugere que a verdadeira natureza desse reflexo só pode ser encontrada rastreando-o de volta à sua fonte, e que isso só pode ser feito pela compreensão da identidade do ser que é refletido no espelho. Esse processo, a investigação da natureza do Ser através do processo de ātma vicāra, é o único método, de acordo com Grant (1994: 107), que leva à descoberta da natureza da verdadeira vontade, em outras palavras, a natureza de Thelema.
Se a verdade ontológica da existência reside em sua unidade e unicidade, a experiência da dualidade constitui um problema que deve ser efetivamente enfrentado. A conhecida posição advaita, associada à filosofia de Ādi Shankara (788-820 d.C.), sugere que a percepção da realidade como constituída tanto pelo sujeito quanto pelo objeto, repousa na apreensão engendrada pela força de māyā, pois somente o sujeito existe verdadeiramente. A posição de Grant não é consistentemente articulada da mesma maneira, mas frequentemente se alinha à atitude tântrica, que homologa o aspecto dual da existência com o par divino de Śiva e Śakti, cujo abraço erótico fornece os meios de união ontológica (o que pode ser, com um grão de sal, comparado ao princípio ocidental de coincidentia oppositorum). Na formulação de Grant (1972: 151), o ato sexual constitui um sacramento que possui uma “virtude peculiar, visto que efetua uma transformação da consciência por meio da aniquilação da dualidade aparente”. Pode-se acrescentar que, no pensamento indiano, essa noção — a analogia do abraço sexual e seu arrebatamento associado com a experiência da unidade ontológica que é o atributo essencial de brahman, o verdadeiro fundamento da existência — é muito antiga, com seu locus classicus nos Upanishads Védicos (Brihadāranyaka Upanishad 4:3:21).
O aspecto fundamental da posição advaítica de Grant diz respeito à sua priorização da consciência como a única realidade verdadeira. O mundo é ontologicamente não dual porque, em sua natureza última, consiste em uma consciência singular. No entanto, embora essencialmente una, a consciência se manifesta por meio de vários modos ou estados, cada um possuindo seu próprio conjunto de leis operativas e cada um aparecendo como real em si mesmo, dentro de seu próprio domínio. Estes são o estado de consciência desperta, o estado de sonhos e o estado de sono profundo sem sonhos. Grant é muito consistente ao relacionar esses estados às suas designações sânscritas (jāgrat, svapna e susupti, respectivamente). (Ele é menos consistente em suas referências ao quarto estado transcendental de consciência, turīya, de modo que ocasionalmente confunde suas propriedades com as do estado de sono profundo sem sonhos.) Seu tratamento deste assunto é um bom indicador do modus operandi geral de Grant, ou seja, embora ele permaneça geralmente correto em suas referências e compreensão do material de origem, ao mesmo tempo demonstra uma inventividade frequentemente controversa na aplicação e elaboração deste mesmo material, como será demonstrado a seguir.
O relato dos quatro estados de consciência já se encontra no Māndūkya Upanishad,35 que recebeu um influente comentário glosado pelo mestre de Śankara, Gaudapāda.36 Portanto, não é surpreendente que esse ensinamento tenha assumido importância seminal no advaita vedānta. Em um parágrafo importante, Grant explica que o verdadeiro eu, desprovido de noções de sujeito e objetos, existe no estado de sono profundo sem sonhos e que quando o tempo e o espaço aparecem, o universo também aparece, “mas todos os três são apenas isso — meras aparências”.37 O local de transição entre o universo conceitual e reificado, por um lado, e a realidade vazia do universo numênico, por outro, Grant designa como Zona Malva e o relaciona ao simbolismo do pântano, que figura tão proeminentemente na obra ficcional de Lovecraft. Para alcançar a verdadeira realidade, é preciso entrar conscientemente no estado de sono profundo, que funciona como a principal porta de entrada para esse estado.38 Grant (1999: 4) escreve que o “símbolo temórfico desta fórmula é Set-Tífon” e é “ignorantemente confundido com ‘mal’ ou o perverso; mas é meramente o reverso ou inverso da corrente fenomenal de manifestação”. Da mesma forma, o estado de sono profundo sem sonhos representa para o iniciado um estado de iluminação, enquanto para o não iniciado é o estado de escuridão.39 E enquanto o relato tradicional nos Upanishads correlaciona os estados de consciência com o célebre mantra Aum, Grant (1995: 5) propõe que o nome da entidade espiritual conhecida como Lam, considerado como mantra, fornece similarmente “um resumo da consciência total do homem” e que “Lam é a porta de entrada para o Vazio” (1980: 154).40 O significado completo desta última afirmação exige um envolvimento mais completo com a posição de Grant em relação à noção de vazio, à qual nos voltamos agora.
A NOÇÃO DE VAZIO NAS REPRESENTAÇÕES METAFÍSICAS ORIENTAIS E CABALÍSTICAS E MÁGICAS OCIDENTAIS
Além de sua visão não dualista da realidade, Grant também argumenta consistentemente que o imanifesto, o vazio e o sem forma representam a verdadeira fonte dos fenômenos e que, por mais paradoxal que pareça, o não-ser é, de fato, o Ser real. Como seria de se esperar, para fornecer suporte doutrinário a essa tese, Grant frequentemente faz referências aos ensinamentos budistas, onde a noção de vazio (śūnyatā) é elaborada exaustivamente, sendo uma das marcas registradas do sistema. Como em outras partes de sua obra, Grant correlaciona os ensinamentos orientais com o que ele percebe serem suas contrapartes mágicas e cabalísticas ocidentais, enquanto o todo é moldado de modo a se adequar à sua própria visão idiossincrática.
Despojada à sua natureza essencial última, a única realidade verdadeiramente existente é a realidade da consciência, que em sua própria forma é a ausência de forma, além da forma, o vazio.41 Esse vazio é às vezes representado pela deusa Kālī, considerada correspondente à deusa thelêmica do espaço, Nuit.42 Nuit, concebida como o espaço infinito, também é consciência absoluta. O símbolo de Nuit é um círculo; o círculo é zero; portanto, Nuit representa o vazio, a única realidade.43 “O vazio… existe no coração da Matéria, além do Tempo e do Espaço e das ilusões da individualidade” (Grant, 1980: 175). O não-ser, o negativo, o numênico é a Realidade subjacente ao mundo fenomenal (Grant, 1977: 27-8). A Realidade é o Não-Ser (Grant, 1977: 26).
O mundo fenomenal é o mundo da ilusão, caracterizado pela divisão entre o sujeito e o objeto, dominado pelo ego, “a fonte do universo conceitual” (Grant, 1977: 49).44 Alcançar a verdadeira realidade implica, portanto, a dissolução do ego, e a fórmula para alcançar isso é “a fórmula da iniciação no Real, ou seja, o antiuniverso ou mundo do não-ser, o negativo, o Ain” (49).45 Naturalmente, o ego teme tal perspectiva e, em sua tentativa de contornar sua dissolução, retrata o reino do não-ser em termos moral e esteticamente negativos. Grant (142) afirma que os criadores originais do mito compreenderam mal a natureza do não-ser e, por essa razão, o representaram como maligno. Esta é uma afirmação importante, pois argumenta que há uma disparidade entre a experiência do vazio ontológico e sua subsequente (má) representação na linguagem moralista. Ancorando sua posição nessas observações, Grant (243-244) dá um passo ousado e controverso ao argumentar que a “magia negra” de fato se relaciona com o mundo do não-ser e, como tal, não é má, mas apenas parece ser para o senso restrito (e construído) de individualidade.
Uma grande exceção a essa representação negativa do vazio ontológico (śūnyatā) e da falta de substancialidade individual (anātman/anatta) é encontrada, como já indicado, nos ensinamentos budistas. “A doutrina budista de Anatta, sozinha entre as doutrinas do ‘antigo éon’, expressa… a transcendência total da dualidade. Nagarjuna elaborou suas implicações na filosofia Madhyamaka” (Grant, 1994: 63).46 Grant insiste que o próprio Crowley falhou em compreender adequadamente a implicação completa dessas doutrinas, mas também acrescenta (73) que é preciso ter em mente que, quando Crowley escreveu sobre o budismo (o que ocorreu bem no início de sua carreira), “certos textos Mahayana vitais traduzidos para o inglês não estavam disponíveis. Refiro-me particularmente aos textos da escola Prajnaparamita”. Em consonância com a tendência esotérica geral em direção à prática da concordância, Grant (1992: 256) sugere que o Mādhyamaka representa não apenas a forma mais profunda de ensinamento budista, mas também “as mais elevadas doutrinas Advaíticas da Índia e da China”.
O vazio ontológico, como o mundo numênico e a fonte e matriz do mundo fenomenal, também está analogicamente relacionado à mulher e seu órgão sexual. Já nos deparamos com afirmações de que deusas como Kālī e Nuit simbolizam a consciência absoluta, que é vazia. Grant também afirma que a Mulher Escarlate, uma das oficiais do Novo Éon na doutrina de Thelema, sendo uma representante terrena de Nuit, fornece a porta de entrada para o vazio.47 Mais especificamente, é o órgão sexual feminino que representa essa porta de entrada. “A vagina é… o Vaso do Vazio que transmite a Palavra — ao Homem — a partir da Voz do Silêncio” (Grant, 1980: 247). Talvez o exemplo-chave que ilustra a linha de pensamento de Grant sobre este assunto seja aquele em que ele correlaciona a “yoni florida” (isto é, a vagina) da mulher que participa do culto tântrico com o śmāśanam, o local de cremação onde os ritos do Caminho da Mão Esquerda (vāmācara) são realizados.48 “Este é o local de queima do desejo, o lugar onde os desejos são consumidos, extintos. Portanto, diz-se que Kali concede Kaivalya (Libertação) no Vazio (Yoni)” (Grant, 1972: 149). A consumação do desejo que ocorre na vagina, a erradicação do interesse pelo mundo fenomenal que se segue à experiência do orgasmo total, abre a porta para o vazio e sua voz silenciosa.49 Grant (150) expressa essa visão em seu estilo inimitável: “Os desejos do tântrico são consumidos na pira funerária do Amado. Aqui está a conexão entre sangue, morte, vampirismo e magia lunar.”50
Um fio condutor conceitual adicional, relevante para o tratamento de Grant da natureza vazia da realidade, diz respeito ao já discutido estado de sono profundo sem sonhos, que se apresenta como uma fronteira final antes do último, o quarto e transcendental estado de consciência, que a tradição indiana designa pelo nome de turīya. No parágrafo já citado de seu ensaio de 1954, Grant define esse estado como “O Vazio = A Única Realidade = O Eu = A Luz Ilimitada da Tradição Ocidental”. 51 Em um ensaio anterior, publicado em 1953,52 esse estado vazio de consciência pura, desprovido de toda atividade mental, é equiparado a brahman, o que está de acordo com a compreensão hindu tradicional da natureza do estado de turīya. Muito menos tradicional é a exegese posterior de Grant, na qual ele sugere que os poderes inatos do Eu, vistos com a mente dominada por conceitos, aparecem teomorficamente como “Antigos”, “Exteriores” e “Profundos”. 53 Eles parecem hediondos, horrendos e inaceitáveis para a mente em seu estado de vigília “devido à incapacidade da mente consciente de conceber energia imensa e sem forma em qualquer configuração que não seja terrível” (1999: 29). Visto dessa perspectiva, o interesse de Grant pelo Caminho da Mão Esquerda e pelas doutrinas “obscuras” justifica-se como um esforço para penetrar no estado de consciência pura e vazia que se encontra além do véu da monstruosidade. O único meio que leva a esse estado envolve a reversão do método mágico tradicional de invocação.54 Para explorar esse assunto mais profundamente, voltamos nossa atenção para os mistérios da “magia negra”, da reversão e do Caminho da Mão Esquerda.
O CAMINHO DA MÃO ESQUERDA
O conceito do Caminho da Mão Esquerda, com sua gama de práticas associadas, constitui um leitmotiv na obra de Grant, a tal ponto que ele afirmou que a restauração dessa forma de magia e misticismo representa uma de suas principais preocupações.55 Nas tradições esotéricas ocidentais, o próprio termo é regularmente usado em sentido depreciativo, especialmente por H. P. Blavatsky e teosofistas, mas também por Crowley, e nesses relatos, semanticamente equivale a uma designação alternativa para “magia negra” e desvios semelhantes do Caminho da Mão Direita, que supostamente conduz ao objetivo legítimo da vida espiritual. A forma como Grant lida com esses dois termos tipicamente faz referência ao seu uso convencional na linguagem tântrica indiana, de modo que ele frequentemente usa os termos sânscritos vāma mārga e daksina mārga, e enfatiza que estes se referem fundamentalmente a nada mais do que dois modos diversos de prática, sem validade moral inerente a nenhum deles. Dito isto, é importante ressaltar que Grant reconhece que mesmo na Índia o Caminho da Mão Esquerda tende a ser confundido com magia negra.
De acordo com sua própria admissão, Grant foi admitido em 1946 em uma Ordem ocultista, na qual recebeu “uma interpretação iniciada de métodos tântricos relacionados ao Vama Marg, ou Caminho da Mão Esquerda, que lida com a adoração altamente secreta da Deusa Primordial, ou Devi” (1972: 2). Ao longo das Trilogias Tifonianas, ele faz alusões frequentes ao ramo Kaula dos vāmācārins (isto é, seguidores do Caminho da Mão Esquerda), e coloca enorme ênfase em “um inestimável Comentário Kaula contemporâneo sobre antigos ritos tântricos” (Grant, 1973: 2), de modo que é uma conjectura segura que a Ordem acima mencionada seja de proveniência Kaula.56 Grant não fornece provas documentais de sua admissão nesta Ordem, o que é esperado e, por si só, de forma alguma impede a autenticidade de sua afirmação. É significativo, no entanto, que a instigação dos Kaulas na Índia seja atribuída ao lendário guru Matsyendranāth, que de fato colocou a adoração de divindades femininas no centro do culto.57 Grant, de forma semelhante, destaca a adoração de divindades femininas como a característica essencial do Caminho da Mão Esquerda, assim como ocorreu com a tradição draconiana,58 e, da mesma forma, como a principal razão para sua difamação. Segundo ele,
a principal causa da difamação do Caminho da Mão Esquerda pelos adeptos dos cultos solar e posteriores — até os dias atuais — deve-se à sua conexão com o aspecto feminino do Princípio Criativo. É o uso mágico-sexual da Mulher nos ritos do Caminho da Mão Esquerda que o tornou universalmente suspeito. (1975a: 2)
Proponho retornar ao tema do “uso sexual-mágico da Mulher” na seção seguinte e focar aqui em alguns outros aspectos do Caminho da Mão Esquerda. A maneira como Grant distingue os dois Caminhos é digna de nota. Ele sugere que o Caminho da Mão Esquerda representa o aspecto esotérico da prática tântrica, enquanto o Caminho da Mão Direita é exotérico em seu modo de adoração.59 Em consonância com a tendência geral de seus escritos, Grant conecta o esotérico com um foco no corpo e seus mistérios. Ele afirma, portanto, que os representantes do Caminho da Mão Esquerda adoram a Deusa no nível mais baixo, o mūlādhāra cakra, de outra forma associado ao elemento terra e ao plano material,60 enquanto aqueles do Caminho da Mão Direita utilizam a “corrente de luz” (isto é, a kundalinī) no nível do chakra mais elevado (sahasrāra, cuja posição é, de fato, acima e fora do corpo).61 Conclui-se, por extensão, que o primeiro modo de prática também é típico do caminho da magia, e o último, do caminho do misticismo.62
Na prática do Caminho da Mão Esquerda, a mulher em si é adorada, e no Caminho da Mão Direita, uma representação simbólica na forma de um diagrama de śrī cakra; no primeiro, a kundalinī é despertada por meios físicos, e no último, por meios mentais.63 Os iniciados no Caminho da Mão Esquerda usam kalās reais (isto é, fluidos sexuais e/ou menstruais) que fluem de uma mulher, enquanto os iniciados no Caminho da Mão Direita usam os substitutos.64 Mais exemplos poderiam ser dados, mas o anterior deve ser suficiente para deixar clara a posição de Grant: ele dá preferência ao Caminho da Mão Esquerda com base em seu privilégio do poder oculto inerente às propriedades sutis do corpo humano. É preciso ressaltar que isso concorda com nossa compreensão atual da escola Kaula da Índia medieval, que igualmente privilegiava o corpo humano e os poderes dos fluidos sexuais reais usados em seus rituais, um processo que mais tarde foi substituído pela incorporação de substitutos simbólicos e que David Gordon White chama de “semanticização” do sexo na prática tântrica.65
Em diversas ocasiões, Grant traduz o termo vāma (isto é, esquerdo) como “jogado fora” e “impuro”. Citando o comentário contemporâneo Kaula já mencionado, ele escreve que o Caminho da Mão Esquerda se refere ao “uso de coisas geralmente consideradas impuras, ou seja, as excreções do corpo humano; o uso de coisas que provocam repulsa”.66 Essa opção metodológica, o manuseio de substâncias que são comumente “consideradas impuras” e que “provocam repulsa”, é uma característica bem conhecida da prática tântrica. Este estilo particular de prática é, por sua vez, apenas um aspecto da orientação ideológica mais ampla, frequentemente glosada como uma “prática de reversão” ou, na linguagem dos Nāth Yogis, a ultā sādhana. Desse ponto de vista, um iogue, e em particular um tāntrika do Caminho da Mão Esquerda, vai “contra a corrente”, na direção oposta ao resto do mundo. Pois a tendência geral do mundo é em direção à sua própria decadência e morte, seguidas por ciclos intermináveis de existência igualmente inútil, ad nauseam. Para se libertar de tal destino, é necessária uma atividade orientada na direção oposta, e isso encontra sua expressão — como uma possível opção metodológica — em fazer aquelas coisas que são comumente rejeitadas, temidas, consideradas impuras e assim por diante.
Grant costuma glosar essa prática de reversão com o termo sânscrito viparīta karani. Ele (1973: 232) define o termo como a “reversão total dos sentidos, apresentando-lhes coisas e ideias das quais, em circunstâncias normais, eles recuariam”. De maneira típica da prática esotérica da concordância,67 Grant conecta esse conceito tântrico com o que ele considera a representação mágica ocidental do processo de reversão, conforme ilustrado na carta de Tarô O Enforcado, que retrata um homem pendurado de cabeça para baixo com um pé amarrado a um galho de árvore ou objeto semelhante.68 Grant também considera que a deusa egípcia Nut — designada como Nuit em O Livro da Lei — e na forma representada na chamada Estela da Revelação,69 também retrata a viparītamudrā (a postura de reversão) com seu corpo arqueado e seus pés e mãos tocando o chão.70 Seguindo Crowley, ele considera essa representação da Deusa arqueada como uma indicação da posição sexual em que a mulher está sobre seu parceiro, e que Grant considera uma postura adequada para que o homem absorva seus fluidos sexuais.71
A elaboração mais radical da prática de reversão é, sem dúvida, representada por Grant explorações do lado negativo ou avesso da Árvore da Vida. O assunto é tratado com mais destaque, embora de forma alguma exclusivamente, em O Lado Noturno do Éden (Grant, 1977). O ocultismo tradicional utiliza o glifo da Árvore da Vida, composto por 10 círculos ou sephiroth (associados aos números de um a dez) e 22 caminhos (associados às letras do alfabeto hebraico), para representar a totalidade dos fenômenos macrocósmicos e microcósmicos. Fora da Árvore propriamente dita, representadas como situadas abaixo da sephira inferior, estão as chamadas qliphoth, as “cascas” associadas a forças negativas, ou mesmo demoníacas. Grant (1977: 1) argumenta que uma iniciação mágica completa necessita da exploração tanto da luz quanto da escuridão e que, consequentemente, a iniciação “não é possível sem uma compreensão dos chamados caminhos qlipóticos que são, na prática, tão reais quanto qualquer objeto iluminado pelo sol”. Essas explorações do lado avesso da Árvore da Vida eventualmente levaram à proposição de que elas, de fato, constituem o objeto próprio do Caminho da Mão Esquerda, que, como tal, é ontologicamente anterior à sua contraparte da Mão Direita. O argumento de Grant para isso é que a esfera própria do Caminho da Mão Esquerda é o mundo numênico do ser verdadeiro, que é paradoxalmente o não-ser. O Caminho da Mão Direita, portanto, lida com o mundo dos fenômenos, que é, em última análise, ilusório. “Não há realidade objetiva, mas há a manifestação da não-manifestação; a sombra do ser que é projetada pelo não-ser” (Grant, 1977: 52-3).
A implicação curiosa e bastante original da posição acima consiste na sugestão — que Grant não declara explicitamente, mas que decorre inerentemente de seus argumentos — de que o Caminho da Mão Esquerda, a adoração do princípio criativo feminino, o manuseio de substâncias proibidas e impuras, a exploração do lado negativo da Árvore da Vida e as ideias e práticas relacionadas se concentram na orientação para a única realidade verdadeira, que é o vazio, o não-ser e o nada. O que para a moralidade convencional, o senso comum e o gosto parece negativo, assustador, amoral e repugnante, é, na verdade, apenas uma máscara da verdadeira realidade e do verdadeiro ser, que é o não-ser. Quanto mais nos aproximamos do Templo da Verdade, mais assustadores parecem os Guardiões no Umbral, e o verdadeiro teste da iniciação implica a capacidade de enxergar através de suas aparências assustadoras e perceber que elas constituem apenas uma máscara.
TANTRA E MAGIA SEXUAL
O tema do Tantra constitui um tema consistente nos escritos de Grant. Como já mencionado, por sua própria admissão (1972: 2), ele foi iniciado em 1946 em uma “Ordem oculta onde recebeu uma interpretação iniciada de métodos tântricos relacionados ao Vama Marg, ou Caminho da Mão Esquerda, que trata da adoração altamente secreta da Deusa Primordial, ou Devi”. Grant (1973: 3) atribui grande importância a “um inestimável Comentário Kaula contemporâneo sobre antigos ritos tântricos”, identificado em outro lugar (1999: xi) como “um Comentário contemporâneo sobre uma antiga obra tântrica, Anandalahari“, tradicionalmente atribuído a Ādi Śa .nkara (788-820 d.C.). Já vimos que, de acordo com a visão de Grant, os sistemas tântricos asiáticos representam um ramo e uma continuação da tradição draconiana, da qual a magia thelêmica instigada por Crowley é a manifestação mais recente. É, portanto, significativo que, já no volume inicial das Trilogias Tifonianas, Grant (1972: 7) se refira ao documento fundador de Thelema, O Livro da Lei,72 como “a Nova Gnose, o Tantra mais recente, o Grimório mais complexo”. De igual importância é também a declaração (Grant, 1972: 131) de que “[o] renascimento de elementos tântricos em O Livro da Lei pode ser evidência de um movimento positivo por parte de Aiwaz73 para forjar um elo entre os sistemas de magia ocidental e oriental”.74 Para elucidar a justificativa de Grant para a correlação que ele traça entre Tantra, Thelema e a tradição draconiana, uma elaboração se faz necessária.
No nível mais óbvio, e em particular com suas constantes referências a Crowley e seus ensinamentos da Ordo Templi Orientis (OTO)75, fica claro que Grant conecta Tantra com magia sexual. À primeira vista, parece que Grant está perpetuando uma identificação errônea comum no Ocidente entre Tantra e sexualidade. A questão, no entanto, é mais complexa do que isso. Para começar, o interesse principal de Grant (assim como de Crowley) não está no ato sexual em si, mas nas propriedades ambrosíacas e ocultas dos fluidos sexuais, particularmente femininos. Isso é tão consonante com as práticas tântricas (especialmente as antigas)76 quanto diferente da busca típica da Nova Era Ocidental pela “bem-aventurança orgástica”.77 A insistência de Grant de que o corpóreo, e não o mental, é o interesse principal nos quadrados mágicos, com o privilégio tântrico típico do corpo humano e seus poderes ocultos.78 E, finalmente, um elo muito importante entre os sistemas mágicos tântricos e ocidentais diz respeito à já discutida noção do Caminho da Mão Esquerda, que também inclui a prática da reversão (viparīta karani) como método de obtenção e que, como vimos, no caso de Grant, torna-se associado a especulações sobre o reverso da Árvore da Vida e questões relacionadas.
Em sua ênfase no valor superior das secreções sexuais femininas, que ele tipicamente descreve como kalas (sânscrito: kalā),79 Grant se distancia de Crowley. Grant sustenta que a compreensão de Crowley sobre a prática tântrica era incompleta e que, consequentemente, ele equiparou erroneamente o bindu — a “gota” de fluido sexual com qualidades ambrosiais — à semente masculina.80 Grant, ao contrário, sugere (1973: 45) que a sacerdotisa no culto tântrico “é a única fonte do Elixir supremo, a prostituta virgem do céu que irradia sua luz estelar sem contato sexual direto com o sacerdote ou qualquer outro membro masculino do Círculo”. (Interpreto o termo “luz estelar” como uma glosa para sangue menstrual ou secreção vaginal.) Deve-se ter em mente que essa posição está de acordo com uma fase particularmente inicial da prática tântrica hindu e budista, na qual
o papel da consorte feminina é vital, porque o fluido do clã (kula-dravya) ou o néctar do clã (kulāmrta), a essência vulvar (yoni-tattva) ou o pensamento de iluminação (bodhicitta) são compreendidos como fluindo naturalmente através de seu útero. Por ser ela própria a personificação da energia da divindade (ou Sabedoria, o complemento da Habilidade masculina em Meios), sua secreção sexual ou menstrual é considerada o plasma germinativo da divindade ou da própria consciência iluminada. (White, 2000: 16)
Grant insiste que a sacerdotisa em um ritual tântrico ou de magia sexual, com base em sua constituição corporal, possui a capacidade de atrair energia cósmica e transmutá-la no elixir da imortalidade.81 Este elixir infunde o sangue “lunar” — ou seja, menstrual — na área do órgão sexual feminino, que é o local tradicionalmente atribuído ao cakra mūlādhāra.82 A consumação do sangue carregado com este elixir, cuja produção é efetuada pela realização do ritual, confere bem-aventurança à pessoa que dele participa.83 Grant (1972: 133) sustenta que a “exsudação e embebição de kalas mágicos inerentes aos fluidos humanos é o tema principal desta ciência antiga, conhecida na Índia como Sri Vidya”.
Um esclarecimento adicional importante se faz necessário. Semelhante à insistência de Crowley de que tanto os aspectos místicos (meditativos) quanto os mágicos (rituais) da Grande Obra precisam ser buscados igualmente como os dois lados da mesma moeda, Grant relaciona as operações da magia sexual a dois fins. No caso da orientação mística, o contato físico entre a Sacerdotisa e o Sacerdote não é estabelecido, e o resultado do ritual “se manifesta em, e como, estados de consciência sem forma que conduzem ao objetivo final de Advaita” (Grant, 1973: 44). Alternativamente, se a operação for conduzida com o propósito de efetuar a manifestação material da intenção desejada, ou seja, se o desejo for incluído na equação — visto que “o desejo só pode culminar no estado de liberdade, ou ausência de desejo, após ter descarregado sua energia potencial na forma de sua própria imagem” — o resultado será a projeção da Vontade (desejo) no mundo da forma: “mágica em oposição à mística, luminosa ou perceptível em oposição à obscura ou imperceptível” (Grant, 1977: 227).
A maneira como Grant lida com o simbolismo da luz é interessante: a escuridão representa o estado de não dualidade, pois não há “outro” — nenhum objeto distinto do sujeito — que possa ser percebido. De forma semelhante, Giuseppe Tucci (1961: 18), comentando o Trimśikā de Vasubandhu, observa que “quando há algo perceptível, há um observador, mas quando o perceptível não está lá… há implícita a não existência do observador, não apenas da percepção”. Deve-se notar que Grant (1973: 44) também relaciona o tipo de escuridão acima mencionado à percepção da “interação de Hadit e Nuit (ou Shiva e Shakti), cuja união explosiva é tão ofuscante em seu brilho que se apresenta como ‘escuridão densa’ e ‘morte súbita’”. Crowley, de forma semelhante, interpretou as propriedades simbólicas da cor preta e sua associação tanto com a deusa thelêmica Babalon quanto com sua correlação com a deusa hindu Kālī, que, de outra forma, tem um papel tão proeminente no culto tântrico.84
CONCLUSÕES
Apesar da natureza controversa de suas afirmações, pode-se argumentar que o envolvimento de Grant com elementos das tradições espirituais indianas é substancial e inovador. O que precisa ser destacado é o fato do comprometimento de Grant com os princípios da epistemologia esotérica. Mais do que qualquer outra coisa, essa epistemologia se baseia no pensamento correlativo: enfatiza a ressonância cognitiva entre a pletora de fenômenos aparentemente não relacionados e, dessa maneira, ilumina a concordância entre sistemas ideológicos e, em última análise, gera a coerência do mundo (cf. Assmann, 2007: xii). É desnecessário mencionar que esse método não é científico nem histórico no sentido convencional e contemporâneo desses termos, visto que, em sua tentativa de atingir seu objetivo cognitivo, não traça a cadeia causal de relações entre fenômenos, mas, em vez disso, busca o reconhecimento de seus vínculos mútuos com base em analogia, semelhança e simpatia. Grant está ciente da natureza provisória e “construída” desse esforço, e deve ser óbvio que sua compreensão do assunto é informada por sua familiaridade com os ensinamentos hindus e budistas que destacam a centralidade da consciência como fator e substância primários na estrutura da realidade:
Um percepto, um conceito ou um número, qualquer objeto, na verdade, não tem relação real com nenhum outro percepto, conceito ou número. A relação só se estabelece na consciência de quem percebe, a consciência que é o pano de fundo sobre o qual todos os objetos aparecem como imagens na tela. Portanto, não pode haver associação de ideias, nem correspondências de qualquer tipo, entre números ou ideias que eles representam, exceto na consciência de seu sujeito, porque nada existe como entidade objetiva. (1994: 158)85
A mais tênue das afirmações comparativas de Grant é aquela que argumenta a conexão entre o Tantra Indiano e a suposta tradição Draconiana, com suas supostas raízes no Egito pré-dinástico. A fraqueza consiste no que parece ser uma tentativa de Grant de explicar essa conexão em termos históricos. Se essa é de fato a intenção por trás de suas afirmações, deve-se afirmar inequivocamente que elas são, na melhor das hipóteses, altamente especulativas, pois carecem de qualquer evidência histórica sólida que as sustente. Deve-se ter em mente, no entanto, que o discurso esotérico difere em sua metodologia e em suas pretensões de verdade do discurso acadêmico e científico e, por essa razão, as afirmações de Grant devem ser consideradas com cautela e não literalmente.
O envolvimento de Grant com os temas da não dualidade e da vacuidade, entendidos como características da realidade última, é original. Grant sugere que o impulso que emana do coração vazio da realidade se manifesta sob a forma de deuses destrutivos e repulsivos. A força responsável por essa mascarada reside no mecanismo de defesa do ego, em sua tentativa de se proteger das forças que não são destrutivas em si, mas apenas do controle equivocado desse mesmo ego sobre a ilusão de uma existência individual separada. Há um paralelo próximo entre a interpretação de Grant desse tipo de dinâmica e os ensinamentos budistas Vajrayāna, que explicam as razões para a aparência irada de alguns Budas e Bodhisattvas, e as noções hindus por trás das imagens furiosas associadas à deusa Kālī. Em cada caso, o que parece demoníaco e assustador o é apenas para a percepção iludida e egoísta. Da mesma forma, em sua interpretação dos estados de consciência, Grant permanece fiel aos ensinamentos tradicionais indianos e, ao mesmo tempo, os aplica criativamente a novas áreas. Ao longo das Trilogias, ele se dedica consistentemente à prática da concordância, da qual a seguinte citação é um bom exemplo. O tema é a natureza da consciência:
A manifestação física da Consciência é a Luz. Sua realidade metafísica é o LVX dos gnósticos, o Jnâna dos Advaitinos, o Buda dos Madhyamikas, o Ain Soph Aur dos cabalistas. (1994: 187)
Na exposição de Grant sobre o Tantra e a magia sexual, dois elementos merecem ser destacados. Em primeiro lugar, há uma linha de correspondência mútua entre a teoria e a prática relacionadas à consumação dos fluidos sexuais, conforme retratada por Grant e descrita em alguns dos importantes tantras hindus e budistas.86 Nesse sentido, sua exposição dessas doutrinas pode ser considerada informada e alinhada às correntes genuínas do Tantra. E, em segundo lugar, ao privilegiar o papel da mulher, seu corpo e as propriedades de seus fluidos sexuais, e especialmente ao glorificar o que as culturas patriarcais tradicionais frequentemente consideravam impureza, ou seja, o fato da menstruação feminina, Grant pode ser considerado um colaborador para a transformação da masculinidade hegemônica87 e, como consequência, e mesmo que apenas por isso, ele merece crédito, assim como o próprio Tantra Ocidental “merece ser levado a sério como um desenvolvimento cultural dentro da sociedade ocidental” (Samuel, 2008: 231). Concluindo, Grant é interessante e importante porque construiu e projetou um modelo alternativo da natureza e do propósito da existência humana — incluindo noções alternativas sobre o corpo humano e a sexualidade — e, ao elaborar esse modelo, ele foi, em grande parte, informado e inspirado por sua compreensão das tradições espirituais orientais, principalmente indianas.