
Herbert Arthur Sloane e sua boneca April Belle em sua “Dragon Room (Câmara do Dragão)”, 1970.
Por Melmothia. Tradução de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares, @conhecimentosproibidos e @magiasinistra.
De acordo com seu fundador, o Coven Nossa Senhora de Endor foi fundado em 1948, tornando-se a primeira religião oficialmente satanista, mas rumores afirmam que nenhum vestígio da ordem existia antes do final da década de 1960. O Coven Nossa Senhora de Endor seria, na melhor das hipóteses, contemporâneo da fundação da Igreja de Satã por Anton LaVey.
A questão provavelmente permanecerá sem resposta, havendo muitas poucas fontes disponíveis sobre este grupo que nunca publicou nada e comunicou muito pouco, em quarenta anos reais ou supostos de existência [1]. Certamente, se a data anunciada de 1948 for verdadeira, este silêncio é compreensível, porque afirmar ser um culto satanista na América da década de 50 teria sido no mínimo arriscado, mas mais uma vez as línguas más respondem que se ele ordenava não dizer muito ao público, simplesmente não tinha muito a dizer em geral.
Ainda assim, o Coven Nossa Senhora de Endor desempenhou o seu pequeno papel histórico no nascimento do Satanismo Moderno e poderia muito bem ser o antepassado não reconhecido do Satanismo Anticósmico.
Nascido em 3 de setembro de 1905, em Rowsburg, Ohio, Herbert Arthur Sloane era filho de Robert Sloane e Hattie Harter. Segundo ele, cresceu no campo e foi contactado, aos três anos, por um “deus chifrudo” que mais tarde identificou como “Sathanas”.
Ele parece ter abandonado a escola por volta dos quinze anos, vestindo sucessivamente o traje de barbeiro, espírita, hipnotizador, médium e clarividente (em folhas de chá), numerólogo e, durante alguns anos, soldado. Em 1928, Sloane, então estabelecido como barbeiro a domicílio, casou-se com uma certa Lillian Mae Harris. No mesmo ano, estabeleceu-se como médium espírita e clarividente. Ele assim permaneceu ao longo de sua vida, às vezes mantendo vários empregos, e o site Satan Service apresenta vários folhetos publicitários nos quais Sloane oferece seus serviços, em seu nome, e no final de sua existência sob o pseudônimo de Kala.
Por mais que seja muito difícil encontrar fontes sobre o culto ao Sathanas de Sloane, minha pesquisa me permitiu saber que sua esposa havia sido acusada em 1938 de roubar uma geladeira – informação que cada um fará o que quiser com ela.
Em 1933, aos 28 anos, ele adquiriu a obra de Margaret Murray, O Deus das Bruxas, e reconheceu em sua descrição do deus chifrudo a entidade que lhe apareceu em sua infância, e novamente, cerca de vinte anos depois. Continuando a carreira de “reverendo espírita”, em 1946 comprou uma boneca de tamanho humano que batizou de “April Belle”, adquiriu o hábito de usá-la durante suas sessões mediúnicas e com a qual afirmava manter ligação telepática. Nesse ínterim, ele se divorciou e se casou novamente. Ele provavelmente teve um filho deste segundo casamento, antes de se casar novamente pela terceira vez em 1956.
De acordo com sua entrevista de 1972 com Hans Holzer e Léo Martello, o Coven Nossa Senhora de Endor foi fundado em Cleveland em 1948, depois mudou-se com Sloane para Mishawaka, depois para South Bend (Indiana) na década de 1950, antes de se estabelecer em Toledo (Ohio) uma década depois, onde o culto teria continuado até a morte de seu fundador em 1975.
O nome “Nossa Senhora de Endor” é primeiro uma alusão irônica à Virgem, vulgarmente chamada de “Nossa Senhora”, depois uma referência óbvia à Bruxa de Endor, a necromante apresentada no Primeiro Livro de Samuel, como uma “médium” capaz de evocar os espíritos dos falecidos e conversar com eles. Nesta passagem do Antigo Testamento, o rei Saul, tendo exterminado a grande maioria dos adivinhos e magos do seu reino, convoca a bruxa de Endor a conjurar o espectro do profeta Samuel, a fim de lhe revelar o seu futuro, incorporando assim perfeitamente o ditado “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.
A primeira fonte do Coven Nossa Senhora de Endor é, portanto, espiritualista. A segunda será gnóstica. Em 1958, foi publicada a obra de Hans Jonas, A Religião Gnóstica: A Mensagem do Deus Alienígena e os Princípios do Cristianismo, que seria uma das maiores influências na ordem (que se acredita ter sido fundada dez anos antes – ah… ops ).
De acordo com Sloane, o Coven Nossa Senhora de Endor é um ramo de uma organização religiosa gnóstica maior chamada Ophite Cultus Sathanas, que pode ser traduzido aproximadamente como “o Culto Ofita de Sathanas”. Como ele frequentemente se refere, seguindo os passos de Murray, à existência de uma religião tão antiga quanto a humanidade, é difícil saber se ele está falando aqui sobre esse suposto culto ou sobre um grupo ativo na América. Mais uma vez, as línguas más não podem deixar de nos lembrar que a igreja de Sloane nunca teve mais de 4 ou 5 membros, cerca de dez de cada vez.
Na passagem dedicada aos Ofitas, Hans Jonas escreve: “Na mesma linha contraditória está a concepção gnóstica da serpente e o papel que ela desempenhou em induzir Eva a comer o fruto da árvore. Por mais de uma razão, entre as quais a menção ao “conhecimento”, a história bíblica buscou vigorosamente a atenção dos gnósticos. Visto que é a serpente quem convence Adão e Eva a provar o fruto do conhecimento e, assim, a desobedecerem ao seu Criador, ela passou a representar, em todo um agrupamento de sistemas, o princípio “pneumático” vindo do além para frustrar os desígnios do Demiurgo. Ela poderia assim tornar-se um símbolo dos poderes da redenção, tal como o Deus bíblico foi degradado num símbolo da opressão cósmica.
Da mesma forma, mais de uma seita gnóstica recebeu o nome do culto à serpente (os Ofitas, do grego ofis; os Naassenos, do hebraico nahas – sendo o grupo como um todo chamado de “Ofítico”). Esta posição da serpente baseia-se num tratamento ousadamente alegórico do texto bíblico. Esta é a versão que encontramos na visão geral das doutrinas ofíticas em Irineu (Contra as Heresias, I, 30, 7): a Mãe de além do mundo, Sophia-Prounikos, tentando frustrar a atividade demiúrgica de seu filho rebelde Ialdabaôt, envia a serpente para:
“induzir Adão e Eva a violarem o mandamento de Ialdabaoth”.
O plano dá certo; ambos comem da árvore:
“que Deus [isto é, o Demiurgo] os proibiu de comer. Mas depois de comerem, conheceram o poder da vida após a morte e afastaram-se dos seus criadores.
É o primeiro sucesso de um princípio transcendente contra o princípio do mundo, que tem interesse vital em impedir que o conhecimento chegue ao homem, refém da Luz neste mundo: o ato da serpente marca o início de toda gnose na terra. A Gnose, por sua própria origem, traz a marca da hostilidade ao mundo e ao seu Deus e, por assim dizer, uma contra-marca de rebelião” [2].
Seguindo os passos dos Ofitas, Sloane vê Satã, na forma da Serpente do Gênesis, como um salvador que oferece gnose aos seres humanos para lutarem contra o demiurgo maligno. Ele também expressa grande simpatia pela figura bíblica de Caim.
Uma terceira e última influência vem das teses de Margaret Murray, que nos dão um pouco de semelhança familiar com o culto de Sloane e com a muito jovem Wicca dos anos 50 e 60: “nossos encontros por ocasião da lua cheia remontam a pré-história, e nosso coven continua essa tradição”, comenta Sloane, que acrescenta que o Deus Chifrudo é a primeira divindade adorada pela humanidade. No entanto, ao contrário de Gardner, o deus bruxo de Sloane não é um deus da natureza, mas sim Satã que vai à guerra contra o demiurgo. Nas palavras de Sloane, Sathanas seria: “O mensageiro de Deus trazendo à Eva o conhecimento de Deus: que existe um Deus acima e além do ‘deus’ que criou o cosmos.” E o Satanismo é definido como: a “oposição à adoração do deus que trouxe o cosmos à existência, como espírito e matéria, arrancando-o do domínio do espírito puro” [3].
Embora ele acredite que “muitas bruxas cometeram um erro ao adorar um deus da fertilidade”, é provável que Sloane tenha se correspondido com o criador da Wicca e haja registros escritos de trocas com LaVey, incluindo uma carta na qual ele a convida para participar de um Sabá do Coven de Nossa Senhora de Endor. A possível adesão de Sloane à Igreja de Satã nos primeiros anos, entretanto, ainda é debatida.
Também está em debate a origem do nome “Sathanas”, que Sloane explica como uma forma primitiva, e vagamente latina, de “Satã”, mas as línguas más, que definitivamente nunca carecem de argumentos, retrucam que este nome poderia vir de um conto de Richard S. Shaver, publicado em Amazing Stories em 1946.

Apesar de se declarar satanista no final dos anos 1960, o Coven Nossa Senhora de Endor atraiu pouca atenção da mídia, ao contrário de sua concorrente de São Francisco, a Igreja de Satã. O grupo parece ter desaparecido após a morte do seu mentor em 1975.
Em The New Pagans (1972), Hans Holzer fornece este trecho deste Sabá da lua cheia celebrado em 14 de outubro de 1970, por Sloane:
“[O sumo sacerdote satanista Herbert Sloane entra na “Câmara do Dragão” vestindo vestes rituais e usando chifres]
O CHAMADO
O coven de Nossa Senhora de Endor do Culto Gnóstico Ofita de Sathanas está iniciando agora o seu Sabá, e o serviço será realizado da seguinte forma: o chamado que acabaram de ouvir, a invocação, o credo, a primeira leitura, os anúncios, a lembrança, a comunhão, a segunda leitura, o sermão, a bênção e o banquete. Inclinemos a cabeça em invocação.
A INVOCAÇÃO
“Senhor Sathanas, invocamos, durante esta reunião do coven, a sua sagrada presença neste Sabá, que nos acompanhe na compreensão, que abra nossos ouvidos para ouvir e compreender as coisas que devemos saber e feche nossos ouvidos e nossa mente para o que não é agradável para você. Obrigado Senhor. Nema, Nema, Nema, Nema!”.
O CREDO
“Agora repitam comigo:
Creio na inteligência ilimitada, incompreensível para todos os seres limitados.
Creio em Sathanas, meu Salvador, pela virtude da Gnose Ofita, que ele transmitiu à nossa Mãe Santíssima, Eva, no Jardim do Éden.
Creio em Eva, que é nossa mãe carnal, e na abençoada Lilith, que é nossa mãe espiritual.
Creio em Asmodeus e em todos os poderes e principados dos reinos celestiais de Sathanas.
Creio na comunhão com Súcubas e Íncubos.
Creio na Gnose do Coven Ofita de Sathanas, na magia e na libertação final das almas de todas as bruxas fiéis, dos poderes do desprezível demiurgo, e na vida eterna no Orco.
Tudo isso pelo poder, bondade, assistência e sabedoria de nosso Senhor Sathanas, nos mundos sem fim.
Nema, Nema, Nema, Nema.”
A LEMBRANÇA
“Rezemos agora a lembrança para todos os benfeitores do Coven e para as almas dos fiéis que nos deixaram. Diremos esta súplica da mesma forma que fizemos o Credo:
Saudações, ó Sathanas, que está no Orco.
Nós, os membros deste Coven, santificamos o seu nome.
Que seus poderes e seus reinos aconteçam, para que sua vontade possa ser manifestada em seus fiéis feiticeiros nesta esfera terrena, como é no Orco.
Dê-nos, nesta lua, Asmodeus como guia para nossa missão.
Saudações, ó Senhor.
Ajude-nos em nossos encantamentos.
Sathanas, inspire nossas almas a mostrar gratidão, o mais elevado dos seus mandamentos.
Preserva-nos de cair nos caminhos demiúrgicos, mas mantém-nos sempre à sombra mística do teu Tridente.
Salve Eva, cheia de sabedoria.
Você é bendita entre todas as bruxas.
E bendito é o fruto do seu ventre, Caim.
Santa Eva, destinatária da Gnose, graciosa Mãe Eva, avó de Enoque, rogai por nós agora e na hora de nossas desencarnações.
Que assim seja agora e para sempre, nos mundos sem fim.
Nema. Nema. Nema. Nema.”
A COMUNHÃO
“Na parte sagrada do nosso Sabá, em memória do nosso abençoado Senhor Sathanas, tomamos a comunhão simbólica da primeira Gnose, mencionada na primeira leitura deste Sabá. Eu me moverei no sentido anti-horário carregando este cálice, e vocês se prepararão para a comunhão.”
[A comunhão é feita com suco de maçã, para lembrar a fruta que o Senhor Sathanas usou para seduzir a Santíssima Mãe Eva no Jardim do Éden].
Melmothia, 2017.
NOTAS
[1] Sloane escreveu uma obra sobre barbearia em 1953, The Sloane System of Hair Culture, mas estamos um pouco longe do assunto.
[2] Hans Jonas, A religião gnóstica: a mensagem do Deus estranho e os primórdios do cristianismo, Flammarion 1978.
[3] Citações de Sex e Satanism, Brad Steiger, 1969.
SOBRE O TRADUTOR
Ícaro Aron Soares, é colaborador fixo do PanDaemonAeon e administrador da Conhecimentos Proibidos e da Magia Sinistra. Siga ele no Instagram em @icaroaronsoares, @conhecimentosproibidos e @magiasinistra.