Uma Visão Sinistra do Livro da Lei

Manuscrito da ONA

Tradução de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares@conhecimentosproibidos e @magiasinistra.

PERSPECTIVA HISTÓRICA

O Livro da Lei – pretensiosamente conhecido como Liber AL vel Legis, mas mais comumente conhecido, entre os conhecedores do Ocultismo, como Liber Al The Legless (Liber do Aleister Sem Pernas), também conhecido como The Book Al Scribed While Legless (O Livro de Aleister Escrito Enquanto Estava Sem Pernas) – é uma alegada comunicação, em 1904, de alguma entidade chamada Aiwass para Aleister Crowley, o ocultista inglês.

Crowley – e seus seguidores – afirmaram e afirmam que o Livro da Lei não apenas deu a Crowley a “autoridade” para conceder a si mesmo o título de Magus, mas também para anunciar um Novo Aeon baseado na palavra de Thelema. Esta Thelema é considerada como uma nova lei e uma nova filosofia de vida para os seres humanos, delineada no Liber AL, e baseada nas frases “Faze o que Tu Queres”, e “Amor é a Lei, amor sob vontade”.

Anos depois, Crowley escreveu extensos comentários e ensaios sobre este livro, com suas explicações geralmente dependentes da cabala magiana.

O LIVRO DA LEI

Em grande estilo, o livro – repleto de Ti e Tu e Sim e Dizes – é uma reminiscência da poesia pseudo-romântica inglesa tardia e da Bíblia King James.

Em conteúdo, ele – como o livro The Coming Forth By Night (O Livro do Anoitecer) de Michael Aquino – se assemelha a um trabalho oculto feito por um Iniciado esotérico que está passando pelo processo de noviciado de objetivar forças inconscientes e arquetípicas em sua psique [NOTA 1], e assim se esforçando para apreender esotérica e racionalmente para proceder à sua integração com a sua própria personalidade. Na tradição esotérica ocidental da Hebdomadria, este é o processo alquímico de Separação (ligado à Estação Alquímica, Escorpião, e à Forma Oculta, Indulgência) associado ao segundo dos sete estágios que marcam o caminho para a Iluminação e a Sabedoria, para a Pedra Filosofal.

A maioria dos Iniciados de tradições esotéricas como a Hebdomadria produzem tais “comunicações” enigmáticas com “entidades” – com um aspecto ou aspectos de sua própria psique objetivada – e para a maioria desses Iniciados é puramente uma experiência de aprendizado. Tendo apreendido, esotericamente e racionalmente, eles seguem em frente, sabendo que têm muito mais a aprender e muito mais a experimentar, e que ainda não são nem mesmo Adeptos. Assim, embora possam ter ficado inicialmente intrigados (e possivelmente até impressionados) com tais “comunicações”, eles as entendem pelo que são – uma experiência básica de aprendizado esotérico – e então as descartam, como um aluno do segundo ano da universidade que estuda matemática descarta as anotações que fizeram nos primeiros termos de seu primeiro ano absorveram o aprendizado que essas anotações continham, um aprendizado que lhes permitia dominar matemáticas mais complexas.

No caso de Crowley, no entanto, ele considerou seu livro como um importante documento ocultista, proclamando tal besteira como “Os irmãos devem ser diligentes em pregar a Lei de Thelema…” e que Thelema equivalia a uma nova religião, com o Liber AL sendo o seu “livro sagrado”.

Não é de se admirar então que a O.T.O. (Ordo Templi Orientis) sob Crowley manteve suas travessuras do Antigo Aeon, e sua pretensão – Pontífice, Epopt, Guardião do Livro Dourado, blá blá blá – como Crowley continuou a escrever (ou escreveu em seu nome) poesia pretensiosa e não original como esta da chamada Missa Gnóstica de Crowley,

Tu, o verdadeiro fogo dentro do junco
Criação e reprodução, fonte e semente
De vida, amor, liberdade e luz,
Tu além da fala e além da vista

Assim, em vez de uma filosofia nova e clara – uma ontologia e práxis originais – obtinha-se uma miscelânea enfadonha do Antigo Aeon, incluindo mitos e lendas egípcias, misticismo e práticas orientais e ocidentais (incluindo, é claro, a cabala) e muito mais palavreado sobre encontrar e seguir “a Verdadeira Vontade de alguém”, um pouco como o Zaratustra de Nietzsche proclamou ” Eu ensino a você o Übermensch…” e tagarelou sobre “recorrência eterna (ou o eterno devir)”.

Em relação ao próprio Liber AL, considere o seguinte –

“Não temos nada com os párias e os inaptos: deixe-os morrer em sua miséria. Pois eles não sentem. A compaixão é o vício dos reis: esmague os miseráveis e os fracos: esta é a lei dos fortes: esta é a nossa lei e a alegria do mundo. Não penses, ó rei, sobre essa mentira: Que Tu Deves Morrer: em verdade tu não morrerás, mas viverás. Agora entenda-se: Se o corpo do Rei se dissolver, ele permanecerá em puro êxtase para sempre.”

Rei?? Quão velho é esse Aeon?! Mas, leviandade à parte, em conteúdo e estilo, isso se assemelha a um amálgama do Zaratustra de Nietzsche (disponível na época em uma tradução inglesa de Alexander Tille) e um texto pseudo-místico do tipo que a Golden Dawn era adepta de produzir, e vinha produzindo, naquela época, há muitos anos.

Por exemplo, considere estes trechos aleatórios da tradução de Tille do Zaratustra de Nietzsche:

Uma virtude é mais do que duas porque é tanto mais um nó no qual pendurar o destino … Amo aquele que justifica os futuros e salva o passado… Amo aquele cuja alma é profunda mesmo quando ferido …

Na verdade, um riacho lamacento é o homem. É preciso ser um mar para poder receber uma corrente lamacenta sem se tornar impuro… Faminto, violento, solitário, ímpio assim a vontade do leão se impõe… Livre da felicidade dos escravos… destemido e inspirador de medo; grande e solitário; esta é a vontade do verdadeiro.

Considere, também, estes extratos aleatórios de alguns dos Manuscritos da Golden Dawn, publicados anos antes de Liber AL, e com quais Manuscritos Crowley estava bastante familiarizado –

Eu sou a poderosa Mãe Ísis; a mais poderosa de todos os mundos, Eu sou aquela que não luta, mas que sempre vence, Eu sou aquela Bela Adormecida que os homens sempre buscaram…

rios eternos correm por canais brilhantes, esses canais são de ouro e contêm os incontáveis tesouros dos reis da terra…

Qualquer um que vasculhou a túrgida poesia das cerimônias da Golden Dawn – e de muitos de seus outros documentos – e que leu a tradução de Tille do Zaratustra de Nietzsche, provavelmente começará a apreciar de onde veio a inspiração de Crowley para o Liber AL vel Legis.

Talvez, como algum comentarista certa vez comentou, Aleister Crowley (Al, para seus íntimos) estava sem pernas na época – em uma farra de três dias – de modo que o título alternativo para seu grande trabalho, Liber Al The Legless (Liber de Aleister, O Sem Pernas), não é inapropriado. Talvez, afinal, como outro comentarista uma vez sugeriu, Liber AL e Thelema, e o grupo da A.’. A.’. de Crowley, eram uma piada monumental e um meio de mantê-lo bem abastecido com bebida, heroína, rapazes e moças.

No entanto, parece, a partir dos eventos subsequentes, que Crowley realmente acreditava nesta “revelação” (ou inspiração) e, portanto, realmente acreditava que Thelema era algum tipo de nova lei para os seres humanos, e que ele era, portanto, como ele mesmo proclamou publicamente e um tanto teatralmente, com o direito de se chamar um Magus Oculto.

No entanto – dada a natureza e conteúdo do Liber AL, e a maneira de Crowley de promulgá-lo – esta afirmação é certamente ilusória; a alegação de um charlatão.

Por que? Por duas razões. Primeiro, o estilo e o conteúdo. Em segundo lugar, a maneira de sua redação e sua promulgação inadequada.

EM RELAÇÃO AO CONTEÚDO. (1) não há nada criativamente original; nada genuinamente esotérico. Existem apenas percepções antigas e banais (como “encontrar a si mesmo”, seguir o próprio destino, “amar a si mesmo” e “seu dever para com a humanidade”) revestidos de fraseologia pretensiosa e ocasionalmente enigmática; e tudo o que se afirma ser esotérico requer “interpretação”, exegese: exatamente como todos os textos do Velho Aeon requerem “interpretação”, exegese; (2) há uma confiança em ambas as formas arquetípicas mortas (egípcias) – indicando uma falta esotérica de compreensão dos arquétipos [NOTA 2] e na cabala magiana (não-ocidental); e (3) o mais pertinente de tudo, seu conteúdo o proclama como um trabalho de um Iniciado esotérico passando pelo processo de noviciado de objetivar forças inconscientes e arquetípicas em sua própria psique.

Em respeito ao estilo. Já mencionamos sua pretensão literária – sua poesia pseudo-romântica inglesa tardia e sua imitação da Bíblia King James. Um estilo pretensioso totalmente incompatível com aquele de um Adepto genuíno (muito menos aquele de um Magus) que poderia e iria expor pensamentos, intuições, conhecimento, aprendizado, experiência, de uma maneira despretensiosa e compreensível. Além disso, o estilo do The Book of The Legless (O Livro do Sem Pernas) é críptico, muitas vezes ao extremo – uma pretensão críptica, uma afetação mundana, totalmente incompatível com um Adepto genuíno (muito menos um Magus) que falaria e escreveria diretamente, de uma maneira mais compreensível.

Em relação à sua redação e promulgação inadequada. Crowley não escreveu racionalmente, da maneira intelectual imparcial apropriada para um Magus genuíno, sobre o novo modo de vida que desejava promulgar, pois não reivindicou esse caminho – o de Thelema – como sendo algo que ele mesmo havia fabricado, novamente como um Mago genuíno faria.

Em vez disso – como um charlatão – ele não apenas proclamou que sua “nova lei” resultou de “uma voz falando com ele” e que era “uma nova revelação” (substituindo todas as outras, é claro), mas também (como algum vendedor medieval de poções falsas) emitiu um aviso, protegendo assim suas apostas, e assim afirmou que cabia a cada indivíduo interpretar Thee Book of Thee Law (O Teu Livro da Tua Lei) por si mesmo, embora, é claro, ele mesmo fornecesse comentários extensos para ajudá-los a interpretá-lo.

CONCLUSÃO

Deve-se concluir que o Liber AL é um documento firmemente enraizado nas tradições, nos modos, na pretensão do Velho Aeon, e que longe de proclamar alguma nova revelação impressionante, ou mesmo filosofia, sobre o cosmos e nós mesmos, ele meramente expressa percepções antigas e banais (como “encontrar a si mesmo”, seguir o próprio destino, “amar a si mesmo” e “seu dever para com a humanidade”) em alguma fraseologia pretensiosa e ocasionalmente enigmática.

Esta visão é confirmada pelas: (1) interpretações do Liber AL – usando a cabala magiana; (2) pelo uso feito do Liber AL como algum tipo de texto “sagrado” ou “importante” e revelador que requer (parcialmente devido às suas antigas declarações enigmáticas) interpretação e exegese; e (3) sua dependência de formas arquetípicas mortas.

Em suma, é apenas um trabalho oculto feito por algum Iniciado da tradição Oculta Ocidental distorcida, baseada na cabala e não genuína, e é impregnado do próprio ethos magiano.

Ordem dos Nove Ângulos
122 Anos de Fayen

NOTAS

[1] A ONA define a psique como

“Aqueles aspectos de um indivíduo – aqueles aspectos da consciência – que estão ocultos, inacessíveis ou desconhecidos para o indivíduo. Basicamente, tais aspectos podem ser considerados aquelas forças/energias que influenciam ou podem influenciar o indivíduo em um maneira emocional ou de uma forma sobre a qual o indivíduo não tem controle direto ou compreensão. Uma parte dessa psique é o que tem sido chamado de “inconsciente”, e algumas das forças/energias desse “inconsciente” foram e podem ser, descrito pelo termo “arquétipos”

[2] De acordo com a ONA, os arquétipos são:

“Uma presença causal particular de uma certa energia acausal e, portanto, semelhante a um tipo de ser vivo acausal no causal (e, portanto, “na psique”): que nasce (ou pode ser criado, por meios mágicos), vive, e então ele “morre” (deixa de estar presente, presenciado) no causal (ou seja, sua energia no causal cessa).”

SOBRE O TRADUTOR

Ícaro Aron Soares, é colaborador fixo do PanDaemonAeon e administrador da Conhecimentos Proibidos e da Magia Sinistra. Siga ele no Instagram em @icaroaronsoares, @conhecimentosproibidos e @magiasinistra.

ORIGINAL

The Big Ass ONA Collection.

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