
A Fonte de Hécate
Por Kenneth Grant, Hecate’s Fountain, Parte Três: A Sombra Externa, Capítulo Dois. Tradução de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares, @conhecimentosproibidos e @magiasinistra.
QUANDO Michael Bertiaux alude aos números como “agentes do mal, ou focos dos poderes mágicos negros”, ele está se referindo ao poder dos números para definir um conceito sem vesti-lo de forma sensível, permitindo-lhe mover-se misteriosamente na escuridão da invisibilidade. Os números são uma maneira de penetrar na escuridão interior e de formular – sem forma – as essências ou kalas do Vazio, que, ao serem evocadas das profundezas, vestem a semente invisível nas vestes da carne (realidade). Cada indivíduo tem que sondar suas próprias profundezas e, mergulhando profundamente no insondável interior, capturar o Verdadeiro Número, o Verdadeiro Nome que é sua própria fórmula secreta e inefável.
Para que o magista sobreviva, “ele deve, à sua maneira, dominar os poderes do mal radical que estão incorporados nos poderes e números do mal”. [1]
Pitágoras declarou que os números pares tipificam as divindades infernais, os números ímpares as celestiais, sendo a tese de que os números pares recebem “outros” em si mesmos. Como um vácuo, eles sugam a luz do exterior. Bertiaux destaca o fato de que os antigos filósofos
“ensinavam que o chela [2] principiante deve realmente chegar a um acordo com esses poderes se ele deseja fazer algum tipo de progresso no mundo do conhecimento. Portanto, ele deve aceitar o mal radical que emana da presença de números neste mundo”.
Bertiaux, portanto, desenvolveu vários métodos de evocar entidades não humanas pelo uso de cálculos numéricos complexos que às vezes envolvem o lançamento de dados.
A equação dos números com o ‘mal’ é básica para o Clube Choronzon, como é dos gnósticos que acreditam que existe uma hierarquia do mal que exerce sua influência positiva no mundo da experiência humana. Isso significa que o que é negativo também é positivo em seus efeitos…
“O principal agente espiritual é a hierarquia dos números… números do mal em termos de sua organização pura. O mal exibe os mesmos padrões de Ordem que são exibidos pelos números. Além disso, não há algo nos números que convida o mal a vir e viver nele intencionalmente? Sabemos que… onde o mal ocorre, há números na consciência, como se os números levassem o mal à pessoa ou lugar onde ocorreu o mal. Certamente deve haver alguma razão para essa hospitalidade para com o mal?”
Ele então dá uma série de números ímpares – 3, 5, 7, 9 – que são descritos como “masculinos” e uma série de números pares – 2, 4, 6, 8 – descritos como “femininos”. Isso é um reflexo da divisão platônica dos números em termos de bem e mal. Os números pares são equiparados à função absortiva do lado noturno, o Negativo, o Ain, a Grande Vulva do Vazio; os números ímpares tipificam os poderes ou energias que projetam ou criam, em virtude de sua rigidez, sua incapacidade de ceder à entrada de qualquer coisa além de si mesmos, sua incapacidade de dividir. Quando se tenta penetrá-los, eles não podem conter todo o poder de fora; eles assimilam uma parte e quebram o resto em frações. Lenormant observou que os antigos consideravam os números fracionários como demoníacos. [3] É assim, no sentido de que representam os “reflexos orgásticos descartados” [4] do espasmo criativo, quando, incapaz de se realizar por uma explosão total, deixa fragmentos dispersos de si mesmo. Esses fragmentos são propensos à obsessão por forças qlifóticas. Nesse sentido Bertiaux escreve sobre números “bons” e “maus”.
Números tipificam mundos absolutos,[5] assim Bertiaux declara que
“os mundos que exibem a revelação do Absoluto são os mesmos mundos que revelam a hierarquia do ser e que, por causa de sua alteridade, são conhecidos também como mundos maus, pelo menos maus do ponto de vista da cultura humanista, que afirmam ser auto-suficientes, mas podem ser vistos como Ser Gnóstico por aqueles metafísicos iniciados que foram além das aparências materiais e entraram na visão de que o que é, em última análise, real está além dos sentidos. Além disso, porque o pensamento religioso institucional se rendeu ao materialismo, esses reinos são vistos como demoníacos por mentalidades dominadas pela igreja, sem a luz da gnose.”
Pode ser bom notar aqui que – tacitamente, pelo menos – aeons atrás e além do presente são vistos como igualmente demoníacos dentro de tais categorias de pensamento. George Oliver pergunta [6] como Pitágoras reconciliou a doutrina dos números pares e ímpares “com seu conhecido axioma, de que os números quatro e dez eram a Tetráctis, ou nome sagrado de Deus?” A resposta é que tanto quatro quanto dez denotam zonas de poder abaixo do abismo, [7] ou horizonte, equiparando assim esses dois números com os deuses infernais ou moribundos. Mas os deuses supremos estão abaixo do horizonte, porque aqueles que morrem alcançam a imortalidade.
Michael Bertiaux oferece outra explicação profundamente esotérica: “O número 10 é simplesmente uma fronteira entre um mundo e o outro”. O um além de dez (ou seja, o onze) é o início de uma nova série de números, uma ressurreição por assim dizer: “11 é o início de um novo universo inteiramente, um mundo como o do Absoluto, mas porque é como o Absoluto é uma imitação do Absoluto, e não a revelação do Absoluto. 10, então, está entre o ser e todas as suas imitações, e assim 10 representa uma falsa consciência-da-gnose. Ele sabe onde está a gnose, mas não possui em si o ato da gnose. É a inconsciência-em-si.”
Isso é de particular interesse quando visto à luz da Árvore sefirótica. Dez é Malkuth, e como tal é a forma plenamente materializada do Um (Kether), e do duplo Um (onze; ou seja, Daath). Malkuth, portanto, representa uma falsa consciência no sentido de que desconhece a natureza absoluta da Dupla Corrente que – em sua forma do Um além do Dez – é a não-manifestação tipificada pela Zona Malva. Nessa zona, todos os kalas se unem e se cancelam. Eles aparecem em Malkuth como o arco-íris da manifestação; como o véu que obscurece a fonte do ser, que é o não-ser, e que, portanto, aparece como “inconsciência-em-si”.

Bertiaux mostra também como o Tempo (os kalas)
“se relaciona com a meontologia [do número] 10. Pode-se dizer que aqueles que estão no mundo da ilusão estão do lado do número 10, que vivem dentro da prisão da ilusão”.
É a condição daqueles cuja consciência está limitada, durante o estado de vigília, quase inteiramente à esfera de Malkuth. A menos que este estado seja transcendido, a ilusão permanece. A transcendência pode ser efetuada tanto pelo caminho do sonho, quanto pela abertura [8] de células contendo memórias atávicas.
A plantação de símbolos na esfera de Malkuth é um dos procedimentos do Voudu esotérico. Os símbolos, no entanto, não perfurarão as cascas que cercam os centros de consciência que são incapazes de reagir como influências positivas. Ou seja, cada símbolo possui um poder autônomo, independente da consciência de quem vagueia no reino da ilusão (desperto ou sonhando).
Símbolos têm poder independente em Malkuth, como em todas as zonas de poder abaixo do Abismo, embora além do Abismo o Adepto esteja ciente de que nada existe fora da consciência. Mesmo assim:
“Não basta dizer que o símbolo é o signo que sugere algo místico. O símbolo deve ser uma máquina ou motor para a geração de poder mágico à sua maneira, não de qualquer maneira que dependa da mera mente do praticante. O Voudu deve ser uma ciência do sucesso que funciona para todas as mentes, e não apenas por causa da atitude mental, pois o Voudu é a ciência que lida com os poderes como eles são em si mesmos, não por causa do que pensamos. Então, o Voudu não é psicológico, é metafísico e físico [9] – os símbolos que ele usa são poderes físicos.”
Isso explica o uso de sigilos e símbolos em relação a invocações extraterrestres. Também explica a maneira pela qual as energias são desviadas da Zona Malva para formar veículos para entidades alienígenas. A palavra loa (espírito) pode ser traduzida como ‘lei’ ou ‘princípio’.
Seu número, 101, é o da palavra ‘self/eu’, a unidade básica do complexo corpo-mente humano. Em seu significado mais esotérico, 101 indica ‘Emme Ya’ ou ‘Estrela das Mulheres’, que foi localizada como “um planeta ao redor de Sirius”. [10] Isso identifica a origem do loa atualmente preocupado em se infiltrar na aura da terra. Tal interpretação ganha suporte pelo fato de que 101 é também o número de MBTN, significando ‘fora do ventre’, sugerindo assim a origem do loa em ‘Emme Ya’.
Se o loa é reconhecido como o princípio da consciência humana, então a inferência cabalística é que ele foi plantado – a partir do complexo de Sirius – como o ‘eu’ no homem. Isso identificaria a consciência do homem com a Corrente estelar. [11] O uso de vevers em ritos tradicionais de Vodu pode ser uma lembrança direta de sigilos usados pelos sirianos para estabelecer tráfico com a terra. Como observa Bertiaux: “esses símbolos são os meios pelos quais os contatos internos do Vodu, ou os espíritos (loa), operam através do véu que separa o interno do externo”, significando assim a consciência interna do homem e os contatos do espaço exterior.
‘Emme Ya’, portanto, é uma possível fonte de origem para o loa ou lei que atualmente está influenciando nosso planeta. É certamente significativo que a palavra loa seja uma a menos que LAMAL, 102, um palíndromo que expressa o verdadeiro culto de LAM como o transmissor para o AL (Existência) das vibrações de LA (Não-Existência) via MA, a fórmula da filha, e a chave para o Aeon de Maat. Observe também que 102 é o número de QB, a raiz de “Caaba” [12] que deriva do Kabh egípcio, o ‘vaso da libação’, ou seja, o Graal de Babalon. O veículo de Babalon é Nu Ísis. Nu (56) + Mu (46) = 102. O loa ou ‘lei’ é assim uma combinação dos aeons de Hórus e de Maat concentrada na Corrente de Lam, seu intermediário terrestre.
Como observa Bertiaux:
“Símbolos são os meios pelos quais os contatos internos do Voudu, ou os espíritos (Loa), operam através do véu que separa o interno do externo. Os símbolos tornam-se instrumentos de percepção ou renovação por meio dos quais os espíritos olham para o nosso mundo e causam certas coisas que desejam que aconteçam.”
O episódio seguinte dos Anais ilustra alguns desses pontos. Trata-se de um velho africano e sua caixa de bruxa. Ele se referiu a ela como sua “caixa ordinária”. Era, de fato, uma forma de atua, embora não do tipo usual, pois se assemelhava a uma velha caixa de botas, exceto que os lados eram esculpidos em forma de serpentes enroladas. A parte superior da caixa era de madeira lisa quebrada pela adição de uma alça de padrão de cesta. [13]
Era uma reminiscência das armadilhas espirituais usadas nas cerimônias de Vodu envolvendo manequins mágicos.
Um dos rituais da Loja incluía a caixa junto com alguns dos manequins mágicos usados em ritos anteriores. [14] É importante ressaltar o fato de que esta caixa em particular não havia sido usada anteriormente em nenhum rito pertencente à Loja Nova Ísis, nem havia sido especificamente consagrado para uso em lojas. Este fato foi descoberto antes que fosse possível selar em sua fonte as zonas de poder que foram posteriormente ativadas.
O rito preocupava-se principalmente com a invocação de loa ligado ao Barão Samedi. Envolvia também certas redes identificadas exotericamente com a Encruzilhada e com a Casa de quatro faces, Carfax [15], o ponto de intersecção entre este mundo e o ‘outro’ mundo, normalmente mas erroneamente, descrito como o ‘próximo’; entre os ‘vivos’ e os ‘mortos’.
A Suma Sacerdotisa nesta ocasião era chamada de Zoyle. Ela era uma membra do reflexo europeu do Culto da Serpente Negra. Dois pares de manequins foram colocados em uma tira retangular de pergaminho com inscrições de caracteres tibetanos dispostos como um quadrado mágico. [16] O fato das estatuetas terem sido magnetizadas pelos Ritos Drukpa era, na época, desconhecido. Elas estavam ligadas umas às outras por um cordão escarlate e verde, a caixa foi colocada sobre elas como uma gaiola. A luz incerta lançada pela lanterna suspensa acima do trono, no centro da sala, filtrava-se através das espirais de serpente que formavam os lados da armadilha espiritual e lançavam sombras nítidas sobre o pergaminho.
Zoyle colocou as mãos extraordinariamente esbeltas sobre o topo da caixa, fechou os olhos e entoou o feitiço de Samedi. Seu ritmo era retomado por dois tambores, um de cada lado do trono, tocados por acólitos vestidos com mantos brancos estampados com a Serpente Negra de Damballah. Um terceiro acólito entrou, trazendo uma bandeja na qual um cone de incenso emitia finas flores azuis que logo encheram a sala com uma fumaça inebriante.
O objetivo do rito era casar duas correntes contrárias que haviam sido invocadas para abrir as células do loa designadas pelos caracteres tibetanos. A natureza híbrida do rito – combinando elementos do Vodu haitiano e do Bon tibetano – exigia a sanção inicial do Barão Samedhi.
Uma forte corrente de energia fluiu das mãos de Zoyle, e quando ela as retirou da caixa antes de subir no trono, as cargas magnéticas eram visíveis em traços de luz violeta. Eles tocaram no topo da caixa, convergiram para a maçaneta e se infiltraram na área abaixo. Uma chuva cor de malva caiu sobre os manequins, que pareciam animados enquanto jaziam nos glifos tibetanos.
A carga havia sido habilmente realizada e as bonecas estavam quase incandescentes. À medida que mais acólitos entravam no salão da loja, um som lamentoso se misturava com o baque surdo dos tambores.
A segunda etapa do rito foi alcançada, e um sacerdote mascarado apareceu e se rebaixou diante de Zoyle. Perdida no yoganidhra [17] ela estendeu a mão sem ver, seus dedos parecendo ainda mais alongados na luz brilhante que descia do único olho que agora brilhava no lugar da lanterna no centro do teto. Quando o Sacerdote se levantou, um par de manequins inadvertidamente escorregou do lado da armadilha do Espírito e caiu no chão. O impacto – leve como foi – despertou Zoyle. Ela se levantou do trono, segurando seu lado como se estivesse perfurada por uma flecha. O sacerdote, abaixando-se para pegar os manequins, estava igualmente aflito, mas na região da garganta. Ele balançou vertiginosamente e engasgou para respirar.
Imediatamente acima da armadilha de espíritos se reuniu uma nuvem luminosa que subiu como névoa das profundezas da caixa. Dentro dele brilhavam inexpressivos – como se projetados de baixo – os caracteres tibetanos, que lembravam os misteriosos glifos de Senzar, a língua do Livro de Dzyan.
Os manequins caídos rolaram além do alcance, e quando Zoyle afundou no trono, a armadilha espiritual parecia uma cela eletrificada na qual os bonecos restantes brilhavam como se estivessem a ponto de explodir. A intensidade de seu calor era tal que anéis reais de chama subiam através das espirais da serpente. Era uma caixa bem comum, como uma caixa de botas, mas naquele momento abrigava forças que explodiram Zoyle e o sacerdote. Quando a armadilha foi finalmente retirada do pergaminho, restava apenas cinzas.
Mas o velho africano era um bruxo astuto! Os manequins perdidos nunca foram recuperados, e Zoyle e o sacerdote foram despojados durante a noite de seus poderes mágicos. A cinza estava no sigilo de S’jugg, [18] um reflexo primordial do Barão Samedi.
Dois indivíduos hostis à Loja – uma bruxa e seu amante – morreram naquela noite. [19]
NOTAS
1 Artigo intitulado “Números do Mal”, de Michael Bertiaux, 1979.
2 Ou seja, o neófito.
3 Magia Caldeia (Lenormant), pp.25-26.
4 O termo foi cunhado por Wilhelm Reich e usado em outro contexto.
5 Cf. AL.I.4: “Todo número é infinito, não há diferença”.
6 A História da Iniciação (Oliver), p.87.
7 Ou seja, Chesed e Malkuth.
8 Por meio de transe, choque súbito, êxtase ou por métodos especificamente mágicos.
9 Itálico do presente autor. A grafia de Voudu peculiar aos escritos de Michael Bertiaux é para distingui-lo do tipo tradicional.
10 Veja “Um Sistema Sudanês de Sirius”, de M. Griaule e G. Dieterlen, cuja tradução aparece em O Mistério de Sirius ( Temple).
11 No AL a natureza do homem e da mulher é descrita, inequivocamente, como estelar. Veja AL.L.3.
12 Veja AL.III.41.
13 Veja a ilustração 3.
14 Veja Fora dos Círculos do Tempo, ilustrações 12 e 13.
15 Daí o nome da Casa do Drácula, que é da Zona Malva, o Lugar dos Mortos-vivos (nosferatus).
16 Veja a ilustração 3.
17 O ‘sono da união’ com o loa.
18 O número de S’jugg é 82, que é o número de LBN (Laban), descrito na tradição rabínica como “o maior magista do mundo; que, com a ajuda de seus ídolos [bonecos ou manequins mágicos] aprendeu tudo o que desejava saber”. 82 é também o número de Gaznak, “o maior mágico entre os espaços das estrelas” (Dunsany, O Livro das Maravilhas), e das Lâmias – bruxas que apareciam como lindas cortesãs, fantasmas ou sonhos. As lâmias são descritas como “monstros sugadores de sangue e voadores noturnas”. Ainda mais significativamente, S’jugg, como 322, equivale à forma sânscrita do Dugpa tibetano, ou seja, megha-svara, que significa ‘voz da nuvem’ e significa uma influência do espaço.
19 A seguinte nota marginal apareceu no relato original deste rito nos Anais da Loja Nova Ísis: “Um caso inclassificável de fenômenos astro-elétricos de curto-circuito”.
SOBRE O TRADUTOR
Ícaro Aron Soares, é colaborador fixo do PanDaemonAeon e administrador da Conhecimentos Proibidos e da Magia Sinistra. Siga ele no Instagram em @icaroaronsoares, @conhecimentosproibidos e @magiasinistra.
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