Kali Crua

Veneno e Mel

Por Jayalalita devi dasi, Venom and Honey. Tradução de Ícaro Aron Soares, @icaroaronsoares@conhecimentosproibidos e @magiasinistra.

Eu não adoro Kali como uma mãe. Kali não tem filhos. Seu corpo não é um vaso de reprodução; é uma ferramenta de terror e destruição. Kali não carrega uma criança; ela carrega uma espada. Kali não alimenta uma criança; ela se alimenta, do sangue derramado por sua própria mão. Ela pode ser vista como bonita, mas também pode ser vista como grotesca; ela é crua, nua, radiante, selvagem e inspira admiração e horror. Seu papel não é inerentemente subserviente, gentil ou carinhosa. Ela mata, ela fode, ela alimenta, ela grita. Eu adoro Kali porque sinto uma afinidade por Kali, sinto um desejo dentro de mim de estar entre suas companheiras de bruxas que massacram, riem de maneira divertida e terrível e inspiram medo. Prefiro portar uma arma e matar a vida do que carregar a vida dentro de mim. Eu adoro Kali como uma deusa que não é limitada nem por sua beleza e desejo, nem por sua fertilidade e qualidades maternais. Ela não é deusa do amor, nem da maternidade. 

Mesmo Parvati, que é de fato uma esposa e mãe, é mais do que uma deusa “mãe” benevolente. Ela é uma asceta, que empreendeu austeridades extremas para ganhar a atenção de seu marido, o Senhor Shiva, a quem ela agora se junta em uma vida de renúncia poderosa no Monte Kailash. Seus filhos, Ganesha e Kartikeya, não são produto de concepção e gravidez comuns. Kartikeya nasceu de seis gotículas flamejantes do sêmen derramado de Shiva colocadas no Ganges, produzindo seis filhos que Parvati combinou em um ser. Ganesha foi feito por Parvati enquanto ela tomava banho, raspando a pasta de sândalo de sua pele e transformando-a em uma criança. Ela utilizou recursos externos e sua própria potência interna para moldar e criar essas entidades muito poderosas. Em seu papel como Parvati, ela é fundamental para trazer esses semideuses à existência e influenciá-los para que possam se envolver nas atividades divinas estabelecidas para eles. Mas ela se envolve em suas próprias atividades divinas além da maternidade quando há necessidade, assumindo uma de suas muitas formas e, enquanto isso, ela medita em Kailash, imóvel, potente e pronta. 

É por isso que me volto para o entendimento hindu da divindade feminina (e da divindade em geral) mais prontamente: é completo, abrangendo os muitos aspectos de poder e passatempo, em vez de tentar classificar esse entendimento em definições limitadas e generalizadas. Existem muitas deusas exibindo muitos atributos, assim como existe uma grande variedade na aparência, habilidades e personalidades das mulheres humanas. Uma deusa pode ser adorada como bela, mas outra deusa também pode ser adorada como feia. Você pode adorar uma deusa jovem ou uma deusa anciã. Você pode propiciar uma deusa marcial ou materna, de acordo com os passatempos dela e os seus. Você pode pedir a uma deusa saúde ou riqueza, conhecimento, conforto doméstico, força inumana, vingança. Uma deusa pode ser de natureza gentil ou severa. Uma deusa pode ser compassiva ou sedenta de sangue. Uma deusa pode ser terrena ou cósmica. Existem inúmeras formas, e por trás de todas essas formas está o poder. Não é superior adorar o poder sem forma, assim como não é prático tentar aproveitar a eletricidade sem o uso adequado. Uma deusa não é apenas uma ideia, uma figura a ser conceituada e resumida em alguma noção mais facilmente compreendida: esta é uma deusa “mãe”, esta é uma deusa da “guerra”. A feminilidade divina não é uma noção para envolver o poder feminino em termos de sexo, beleza, castidade, maternidade, etc., nem esses aspectos devem ser denunciados ou negados em favor de um em detrimento do outro. Há poder na beleza, há poder na sabedoria, há poder na raiva, há poder no nascimento, há poder na austeridade, há poder no desejo, há poder na crueldade, há poder na calma, há poder no esforço, há poder na caridade, há poder na luta, há poder no trabalho, há poder na contemplação, há poder na dureza, na doçura, na ação e na inação.

Kali pode ser uma mãe para um homem e uma deusa aterrorizante para outro, e ela pode ser procurada em busca de proteção contra os horrores da existência cotidiana, ou pode ser procurada para bênção ao cumprir deveres brutais. Ela oferece consolo com uma mão e sangue com a outra. Isso não é conflito; isso é completude. Eu admiro Kali como um ser em si mesma e a adoro como uma irmã, como a irmã de Krishna, e uma irmã que eu gostaria de ter. Existem aqueles que se voltam para ela e a amam por motivos diferentes dos meus, e ela tem a capacidade de satisfazer esses relacionamentos, assim como uma mulher humana comum e individual pode desempenhar muitos papéis para muitas pessoas, mas sempre permanecer essencialmente ela mesma. Kali tem um corpo feminino, mas ela não produz filhos, mas ela é considerada nutridora por aqueles que pedem isso a ela. Ela é por natureza feroz, mas tem a capacidade de compaixão. Isso é poder. O potencial para uma forma de poder, sem necessariamente utilizá-lo (o parto), o poder inerente e essencial da natureza de alguém (a ferocidade) e também a vontade e a capacidade de assumir formas de poder mais profundas ou além de sua natureza inerente (a compaixão). Para mim, Kali é sobre violência, ira e luxúria, mas eu a amo ainda mais porque ela também pode interpretar a mãe de forma convincente enquanto sua lâmina paira ameaçadoramente. Essa é a verdade da feminilidade divina.

SOBRE O TRADUTOR

Ícaro Aron Soares, é colaborador fixo do PanDaemonAeon e administrador da Conhecimentos Proibidos e da Magia Sinistra. Siga ele no Instagram em @icaroaronsoares, @conhecimentosproibidos e @magiasinistra.

ORIGINAL

Raw Kali, Fenrir, Issue I, 124 yf.

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  1. Anesio Amancio Barbosa says:

    Muito bom o comentário,e a visão de várias fases da Deusa Kali.

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